Bruxelas, Bélgica - Quando os aviões foram recolhidos e os aeroportos fecharam, já era tarde para interromper a trajetória que levou a 1 milhão de mortos por Covid-19. Nas três semanas que separam 31 de dezembro de 2019, quando o governo chinês comunicou ao mundo a descoberta de uma nova doença, e 23 de janeiro, quando o tráfego aéreo entre Hubei, epicentro da pandemia à época, e o resto da China foi bloqueado, 7 milhões de pessoas haviam deixado a capital da região, Wuhan, para o feriado de Ano-Novo.

Passageiros usam máscaras no aeroporto de Wuhan, cidade considerada epicentro da pandemia
Passageiros usam máscaras no aeroporto de Wuhan, cidade considerada epicentro da pandemia | Foto: Hector Retamal/AFP

Nesse período, Pequim, Xangai e outras grandes cidades chinesas registraram surtos de algo que ainda nem tinha nome – falava-se em pneumonia de causa desconhecida. Os 104 casos notificados até o começo do ano já haviam se multiplicado por seis, considerando apenas os números oficiais. Para além deles, uma rede invisível de contágio atingira ao menos mil pessoas, nos cálculos de universidades americanas, como a Johns Hopkins e a de Washington.

Quase 20 mortes tinham sido atribuídas ao coronavírus, já mapeado geneticamente, mas ainda não batizado. Para os cientistas, era o nCoV. Em mais dez dias, 7.700 foram infectados e 170 morreram na China. Só então se anunciou que a doença se transmitia de um ser humano para o outro. Pior que isso: cada infectado contagiava de duas a três outras pessoas.

Durante todo esse tempo, até 200 mil aviões cruzavam os céus do mundo todos os dias, numa complexa rede de 3.880 aeroportos ligados por 18.810 rotas. Em média, levavam diariamente 6 milhões de pessoas de lá para cá e de cá para lá. E “lá” é com maior frequência justamente a China.

É chinês 1 a cada 6 passageiros aéreos no mundo - quase 700 milhões dos cerca de 4 bilhões anuais, segundo dados da Iata, associação internacional do setor aéreo. A China tem o mais movimentado tráfego doméstico de aviões. Pelo aeroporto de Pequim passam 10 milhões de pessoas por ano. O de Wuhan recebe mais de 55 mil pessoas por dia, levadas para centenas de destinos na China e fora dela.

Quando janeiro terminou, a OMS (Organização Mundial da Saúde) foi a público falar em estado de emergência. Só então voos internacionais saindo da China começaram a ser suspensos, mas o patógeno já havia sido importado por 21 países, entre eles, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Canadá e Itália.

Nos EUA, o primeiro diagnóstico foi feito em 21 de janeiro, em Seattle. Em 24 de janeiro, os dois primeiros casos foram confirmados na França. Àquela altura, ninguém havia recebido o diagnóstico na América do Sul e na África, mas provavelmente o patógeno já andava por ali. Segundo pesquisadores, cerca de 85% dos viajantes infectados não foram detectados em janeiro. Em seus destinos, começaram a espalhar a doença.

Em fevereiro, oito nações europeias haviam confirmado a presença do Sars-CoV-2. "Preocupada com os níveis alarmantes de contágio e severidade da Covid-19", a OMS usou a palavra em 11 de março. A Itália havia acabado de decretar "lockdown", e o vírus já se espalhara por 24 países europeus.

Estudos mostram que a malha aérea determina o padrão global de doenças emergentes, mas isso não quer dizer que a culpa da pandemia seja dos aviões. Foi o acúmulo de uma doença completamente nova, cujo causador se espalha facilmente, em um mundo em que as pessoas se deslocam muito e têm pressa.

O ritmo do coronavírus é outro. Ao entrar no corpo humano, passa por um período de incubação, em que se multiplica até o nível capaz de causar sintomas. A estimativa é que isso leve de 1 a 14 dias. O chamado "intervalo serial", em que ocorre o contágio, é de 4 dias. Um período serial mais curto que o de incubação indica que a transmissão ocorre mesmo sem sintomas.

Dez meses e 1 milhão de mortes depois, os pesquisadores já têm clareza sobre como controlar a pandemia: testar, isolar e tratar os infectados, rastrear os contatos e colocá-los em quarentena, evitar eventos com muita gente em locais fechados e proteger os mais vulneráveis (idosos e doentes crônicos).

A principal pergunta agora é outra, segundo o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan: "Estamos preparados para evitar mais 1 milhão de mortes?". Caso a resposta seja negativa, afirmou o diretor, "não é inimaginável que cheguemos aos 2 milhões de mortos". Mais que imaginável, segundo ele, "sem a cooperação de todos, é provável".