São Paulo - Em mais uma tentativa de reverter o envelhecimento do país mais populoso do mundo, a China quer agora limitar os abortos que não tenham indicação médica. A diretriz está brevemente citada em extenso guia de políticas para mulheres e crianças na próxima década, publicado pelo governo chinês nesta segunda-feira (27).

O aborto é hoje um direito na China e pode ser feito de acordo com a vontade da mulher, com poucas restrições
O aborto é hoje um direito na China e pode ser feito de acordo com a vontade da mulher, com poucas restrições | Foto: iStock

Um dos itens do documento do Conselho de Estado trata da saúde reprodutiva da mulher e tem diretrizes como "disseminar conhecimentos sobre prevenção e controle de doenças sexualmente transmissíveis". Ao final deste tópico, o documento cita brevemente: "Reduzir o aborto que não tenha indicação médica". Não há quaisquer detalhes, no entanto, de como isso acontecerá. Mesmo assim, a menção gerou alarme entre especialistas e parte da sociedade chinesa, que temem retrocesso nos direitos das mulheres.

O aborto é hoje um direito na China e pode ser feito de acordo com a vontade da mulher, com poucas restrições. Segundo uma delas, é proibido interromper a gravidez por não estar de acordo com o sexo do bebê, prática que se tornou comum nos tempos da política do filho único, quando casais preferiam ter um menino, para cuidar da família no futuro, a uma menina, que, pela tradição chinesa, acaba mais próxima dos parentes do marido depois de se casar.

A política do filho único, instituída em 1980 para tentar conter a explosão populacional do país, foi encerrada em 2015. Desde então o governo tem feito movimentos para incentivar que famílias tenham mais filhos, porque, depois de décadas de limitações ao crescimento familiar, a pirâmide etária chinesa começou a mudar, levando a preocupações econômicas e sociais —a população pode ficar cada vez mais idosa sem que o país tenha atingido desenvolvimento econômico pleno.

Legalizado há décadas e de fácil acesso no país, o número de abortos não diminuiu após o fim da política do filho único, mostram dados do Anuário Estatístico de Saúde do governo chinês. De 2015 a 2018, dados mais recentes, foram registrados em média 9,7 milhões de abortos por ano no país. Nos quatro anos anteriores, com a vigência da regra, o número de médio de abortos anualmente foi de 7,3 milhões.

De acordo com o último censo demográfico, a população chinesa cresce à menor taxa desde os anos 1950 e deve começar a encolher antes do previsto, que seria em 2027.

O governo central, desde então, começou a tomar medidas para incentivar que as famílias tenham mais filhos, como a recente autorização para três crianças por casal. É nesse contexto que entra a possível restrição ao aborto.

Para Yaqiu Wang, pesquisadora da ONG Human Rights Watch, a medida mostra que o governo chinês vê as mulheres como ferramenta de propósitos econômicos, diz, citando os abortos forçados que eram praticados pelo estado chinês durante a política do filho único. "Forçavam mulheres a abortar quando queriam controlar o número de pessoas e agora querem dificultar o número de abortos para incentivar que tenham mais filhos", afirma.

Também houve reações em redes sociais. No Weibo, espécie de Twitter chinês, uma mulher protestou: "Isso é um grande desrespeito ao corpo feminino". Outra usuária questionou: "O programa do governo visa o desenvolvimento das mulheres ou visa o desenvolvimento do uso do útero das mulheres?"

Até agora, porém, o governo chinês ainda não explicou o que quer dizer a menção sobre restringir o número de abortos que não tenham orientação médica. Há quem peça cautela, e diga que a menção sugere, na verdade, que o governo quer melhorar a educação sexual para diminuir o número de mulheres que engravidam de modo indesejado.

Isso porque o documento do governo fala também em "garantir que as mulheres façam uma escolha bem informada e independente sobre os métodos contraceptivos e o controle de natalidade". O texto cita ainda como objetivo promover educação sexual nas escolas, encorajar homens a dividir a responsabilidade pelo uso de métodos contraceptivos, incorporar serviços de saúde reprodutiva em toda a rede de atenção à mulher e melhorar os serviços de atenção pós-aborto e pós-parto.