Argentinos reagem a liberação de repressor durante pandemia
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terça-feira, 04 de agosto de 2020
SYLVIA COLOMBO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Desde o início da pandemia de coronavírus, a sociedade argentina tem discutido o que fazer com o risco de infecção dentro das prisões, com um agravante político: os centros de detenção abrigam também 221 repressores condenados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar (1976-1983).
Depois de um motim da penitenciária de Devoto, em Buenos Aires, em abril, quando os detentos pediram para sair por não haver condições de respeitar o isolamento social devido à superlotação, o governo do presidente Alberto Fernández pediu à Justiça uma solução. Naquele momento, já havia contaminados entre os 52 mil internos que ocupavam um espaço com capacidade para 24 mil pessoas.
A decisão da Justiça foi entregar aos diretores das penitenciárias a responsabilidade de escolher quem poderia ser liberado durante a pandemia --preferencialmente autores de crimes leves ou quem ainda aguardava a condenação.
A orientação geral era que não saíssem assassinos, estupradores nem repressores da ditadura, mas era possível levar em conta a idade e o quadro de saúde dos detidos.
"Os critérios não foram respeitados, as liberações foram mal feitas e, ao final, responderam a critérios políticos", explica a advogada Florencia Arietto. Pela lei, os maiores de 70 anos têm o direito de pedir para cumprir o resto da pena em casa --é o caso dos membros do regime militar.
No total, há 862 pessoas condenadas por crimes contra a humanidade durante o governo autoritário. Durante a gestão de Maurício Macri (2015-2019), 57% desses condenados deixaram a prisão e estão cumprindo a pena em casa.
Os que ainda estão na cadeia agora pedem para sair por fazerem parte do grupo de risco da Covid-19. Mas entidades de direitos humanos são contra --devido à gravidade dos crimes cometidos. E poucos foram autorizados a sair.
Para o advogado Emanuel Lovelli, que trabalha junto à associação Avós da Praça de Maio, o Estado tem que ser responsável por garantir as condições de isolamento nas penitenciárias e pelo tratamento, em hospitais, dos infectados.
"O fato de a penitenciária estar superlotada é um problema do Estado, não se resolve liberando o repressor."
A maior parte dos ex-militares está nos presídios de Ezeiza, Marcos Paz e Campo de Mayo. Neste último, há registro de 28 presos e 7 carcereiros contaminados e dois repressores mortos: Juan Domingo Salerno, condenado por tortura, e Edberto González de la Vega, condenado pelo assassinato de militantes de esquerda.
Entre os infectados estão Luis Muiña, condenado por sequestrar cinco trabalhadores de um hospital de Buenos Aires durante o regime militar, e Gonzalo "Chispa" Sánchez, envolvido na morte do escritor Rodolfo Walsh e nos voos da morte. Ele foi recentemente extraditado do Brasil.
Um dos repressores presos no Campo de Mayo, Carlos Capdevilla, 74, que participou do esquema de roubo de bebês e da entrega das crianças a famílias de militares, obteve a liberação devido à idade, mas a entidade de direitos humanos H.I.J.O.S. pressiona para que o benefício seja revogado.
Desde o início da crise, 4.500 detentos foram liberados por conta do coronavírus. O ministro da Segurança da província de Buenos Aires, Sergio Berni, atribui a eles a maioria dos casos registrados de roubo e assalto após a libertação.
"O que se espera dessas pessoas? Foram deixadas na rua com uma mala e lhes disseram: 'Voltem quando a pandemia acabar'", disse a jornalistas estrangeiros na quinta-feira (30). "E o que acham que estão fazendo agora, no meio da pandemia, para se manter? Claro que estão roubando."
A revolta com as liberações causou protestos e panelaços. Uma pesquisa publicada pelo jornal Clarín, ainda no começo de maio, apontou que 81,8% dos entrevistados eram contrários à saída dos detentos.
O nível mais elevado dessa tensão ocorreu na semana passada, na província de Buenos Aires, quando um condenado que havia sido libertado devido ao coronavírus entrou na casa de um aposentado para roubá-lo. O aposentado buscou uma arma, perseguiu o assaltante na rua e o matou.
Enquanto parte dos argentinos defende o aposentado, considerando que agiu em legítima defesa, a Justiça o processou por assassinato. Para a advogada Florencia Arietto, as liberações dos presos durante a pandemia deveriam ter sido feitas apenas em último caso. "O Estado se assustou com os motins nas prisões, mas se mostrou ineficiente para contê-los. O resultado são essas liberações que estão assustando a sociedade."
ALEMANHA
"Estou esperando aqui. Aceito ser julgado na Alemanha, mas não na Argentina. Estou esperando, inocente, calmamente", disse Luis Esteban Kyburg, 72, a um repórter local, ao ser descoberto passeando em Berlim, no meio de julho.
Era evidente em seu rosto a confiança de que não será extraditado e que, longe da Argentina, será muito difícil que se prove sua participação no desaparecimento de 152 pessoas durante a ditadura.
Ainda que o repórter insistisse, Kyburg não deu mais nenhuma declaração. "O caminho para levá-lo a julgamento é muito difícil aqui na Alemanha, mas não impossível", diz o advogado Andreas Schüller, representante da família de Omar Marocchi, assassinado por uma operação em Mar del Plata, em 1976, que teria sido ordenada por Kyburg, então subcomandante da Marinha.
Segundo ele, a extradição é complicada por Kyburg ser cidadão alemão. A irmã de Omar, Anahí, foi à Alemanha pedir que o julgamento ocorra.
A situação é incerta porque as legislações dos dois países são diferentes com relação aos crimes de lesa humanidade e aos abusos de direitos humanos. Na Argentina, se uma pessoa integra um grupo de repressores que cometeu um delito do tipo, basta para que seja acusada --na Alemanha, não necessariamente.
Além disso, os crimes de sequestro e tortura estão prescritos aos olhos da legislação alemã. O único crime que não prescreve é o de assassinato.
A dificuldade aumenta porque se trata de um assassinato ocorrido num centro clandestino de detenção em Mar del Plata, há mais de 40 anos.
Quando Marocchi foi morto, sua parceira, Suzana Valor, grávida de três meses, desapareceu. Além de justiça pela morte de Omar, a família espera ter alguma pista do que pode ter ocorrido com o bebê.
Em 2012, a Justiça argentina emitiu mandados de prisão a vários comandantes da Marinha acusados de crimes contra a humanidade. Ao saber que era procurado, Kyburg viajou para Berlim. A Argentina, ao descobrir, em 2015, que o repressor estava na Europa, emitiu um pedido de busca e prisão à Interpol (polícia internacional) e um pedido de extradição para o governo alemão.
Como o ex-militar é cidadão alemão, nada foi feito, e a estratégia da defesa é levar adiante o julgamento em Berlim.