SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Embora a China tenha negligenciado o surgimento do coronavírus e até perseguido cientistas que soaram o alarme para a gravidade da doença, o país asiático deve sair fortalecido da atual crise.

O motivo, aponta o professor Robert Ross, 65, é o fato de ter lidado relativamente bem com a pandemia assim que passou a levá-la a sério, em contraste com a indecisão do presidente dos EUA, Donald Trump.

"A China quer ser o 'país que resolve' do século 21, ao qual os outros podem recorrer. A crise ajuda a promover essa imagem", afirma Ross, pesquisador do Fairbank Center for Chinese Studies, da Universidade Harvard, e professor de ciência política do Boston College.

Considerado um dos principais estudiosos nos EUA da relação com a China, Ross resume essa mudança de percepção numa frase: "As pessoas costumavam dizer que se você tem um problema, procure os EUA. Agora, talvez escolham procurar a China".

Na mesma linha, diz, a China aposta alto na chamada "diplomacia da máscara" para reforçar a imagem de parceira global. O termo foi criado para descrever a doação de equipamentos e cessão de médicos e cientistas para outros países afetados pela pandemia.

Com dezenas de artigos e livros publicados sobre a ascensão da China no cenário internacional e duas passagens por universidades chinesas como pesquisador, Ross afirma também que o país asiático deve sair primeiro da crise econômica provocada pela pandemia.

PERGUNTA - A China vem sendo acusada de ter escondido o coronavírus, mas também é elogiada pelo combate à pandemia. Qual visão vai prevalecer?

ROBERT ROSS - Ambas são verdadeiras. No começo, a China reprimiu informação, escondeu o vírus, o que deu ao mundo uma largada lenta no combate à doença. O Partido Comunista dificultou o trabalho de médicos e cientistas que tentaram soar o alarme, alguns foram presos. Ao mesmo tempo, seria errado dizer que a China é totalmente responsável pela situação, porque houve avisos suficientes para o resto do mundo. Os EUA, por exemplo, foram muito lentos, não fizeram nada nas semanas posteriores à quarentena em Wuhan [epicentro da pandemia]. Trump não fez consultas com outros países, teve uma cooperação mínima. Em contraste, Xi Jinping deu telefonemas para todo o mundo, pediu cooperação internacional, está usando essa oportunidade para criar uma imagem de si como um líder mundial.

P. - O termo "diplomacia da máscara" vem sendo mencionado. O que o sr. acha dele?

RR - O unilateralismo de Trump cria um vácuo de liderança internacional, e isso certamente ajuda a China. Mas os países do mundo sabem que a China é um Estado de partido único, que controla a vida de seus cidadãos. Então, há um limite do quanto a China pode usar essa diplomacia da máscara. A China quer ser o "país que resolve" do século 21, ao qual os outros podem recorrer se precisarem de assistência. A crise ajuda a promover essa imagem.

P. - O modelo chinês autoritário pode ganhar pontos, justamente porque foi assim que ela conseguiu combater o vírus?

RR - As pessoas nos EUA, Europa, América do Sul e Ásia não querem abrir mão da democracia para ter um governo melhor. Mas estão dispostos a cooperar com a China para resolver problemas internacionais. Não há dúvida de que, uma vez que a China decidiu responder à crise, respondeu de maneira muito eficiente. Mas fez isso com medidas extremamente autoritárias, que muitos países considerariam inaceitáveis.

P. - Esse evento pode ser o marco de um início de hegemonia global da China, inclusive sobre os EUA?

RR - Não gosto da palavra hegemonia. Mas esta é acima de tudo uma crise econômica. E a forma como EUA e China responderem a ela terá um enorme impacto na ascensão chinesa e seu papel na política internacional do século 21. Os chineses podem estar mais bem preparados para recuperar sua economia, e isso vai contribuir para sua contínua ascensão. As pessoas costumavam dizer que se você tem um problema, procure os EUA. Agora, talvez escolham procurar a China.

P. - Como o sr. avaliou o desempenho do dirigente Xi Jinping na crise?

RR - Ele primeiro negou o problema e o encobriu, e foi amplamente criticado por isso, inclusive internamente. Ao mesmo tempo, sua diplomacia internacional desde então parece ter ficado mais cooperativa. Trump parece estar consciente de que Xi está sendo um melhor diplomata, estendendo a influência chinesa.

P. - Mas Trump teve que modular um pouco seu tom sobre a China nos últimos dias, não?

RR - Sim. Levou um tempo longo para Trump levantar as sanções aos produtos médicos chineses para os EUA. Demorou para conseguir receber equipamentos médicos. É uma ótima mudança. Mas ao mesmo tempo, [Mike] Pompeo [secretário de Estado dos EUA] está viajando o mundo sendo muito duro com a China e chamando o coronavírus de vírus chinês.

P. - O quanto os chineses se importam com a denominação vírus chinês?

RR - Com certeza isso os irrita muito. Há um forte sentimento de nacionalismo chinês envolvido. Mas também um sentido de orgulho, de que o seu país está fazendo um trabalho melhor do que os EUA.

P. - Por que conservadores, seja nos EUA ou no Brasil, ainda têm tanto problema com a China?

RR - Em muitos países há resistência à nova potência, a um recém-chegado que frequentemente é agressivo na diplomacia e arrogante no comportamento. Nos EUA, vemos conservadores usando a China para tentar obter apoio para uma política externa dura em termos de segurança. Essas pessoas querem que tratemos a China como tratávamos a União Soviética, que adotemos uma política externa da Guerra Fria. Usam ideologia para mobilizar a oposição doméstica à China.

P. - Haverá alguma mudança fundamental na relação EUA-China se os democratas vencerem a eleição americana?

RR - Há muitos democratas que são muito duros com a China. Eles dizem que devemos cooperar onde podemos e competir onde devemos. É uma política diferente da de Trump, que vê competição com a China em todos os aspectos. Assim, não há cooperação em ambiente, comércio, tráfico internacional de drogas, Coreia do Norte, Afeganistão... Um presidente democrata pode dizer: precisamos da ajuda da China para lidar com esses desafios.

P. - A China vai sair desta crise mais forte em termos geopolíticos?

RR - Temos uma crise econômica que levará à recessão nos EUA e a um déficit muito grande. A China também terá, mas vai conseguir se recuperar de modo mais rápido. O que significa que as vantagens da China em termos econômicos serão maiores após o coronavírus e a recessão. É uma situação ruim para os dois países, mas, pelo fato de a China administrá-la melhor, será mais forte geopoliticamente depois da crise.

P. - O que o sr. acha das teorias conspiratórias de que a China criou esse vírus em laboratório?

RR - É tão bobo... Se a China tivesse feito isso para enfraquecer o Ocidente, então deveria primeiro ter desenvolvido uma vacina. Você não usa guerra biológica para prejudicar o seu país tanto quanto os outros países.

RAIO-X

Robert Ross, 65

PhD em ciência política pela Universidade Columbia, foi pesquisador do Brookings Institution e Universidades de Tsinghua e Pequim, entre outras instituições. É membro do Fairbank Center for Chinese Studies, da Universidade Harvard, e professor de ciência política do Boston College. Também é membro do Comitê Nacional para Relações EUA-China e autor de diversos livros e artigos sobre a ascensão da China e suas relações com os EUA.