Vivemos na geração do “mimimi”. Nas redes sociais ou na vida, ninguém pode ser contrariado ou já se sente ofendido. As frustrações – que antes faziam parte do cotidiano – agora precisam ser represadas, escondidas, ou teremos pessoas “traumatizadas”. Um tempo chato, em que viver se tornou superficial e aprender com os erros está fora de moda. Tudo precisa estar perfeito, impecável, como uma foto banal no Instagram.

Nos videogames – que fazem parte da sociedade midiática – não é diferente. Jogadores atuais preferem games em que tudo vem mastigado em tutoriais enfadonhos, como receitas de bolo prontas que facilitam a vida do jogador. Tudo é dado de mão beijada. Se no passado, na era dos 16 bits, games como Ghouls n' Ghosts e Battletoads levavam os jogadores à frustração tamanha a dificuldade, na atual geração parece que ninguém sabe lidar com o 'game over'. Jogos difíceis perderam espaço para as narrativas poéticas e gráficos bonitos. O "mimimi" também está nos videogames.

Sekiro não é uma para a "geração Nutella" dos consoles atuais
Sekiro não é uma para a "geração Nutella" dos consoles atuais | Foto: Divulgação

Mas existe uma empresa japonesa que desde 2009 nada contra a correnteza. A FromSoftware cria games que levam os jogadores ao limite com desafios de alto nível - um estilo chamado 'Soulsborne' – dos seus jogos clássicos Demon's Souls, a trilogia Dark Souls, o super premiado BloodBorne e, agora, no lançamento mais recente, Sekiro: Shadows Die Twice, novo jogo da empresa publicado pela Activision. A reportagem da FOLHA recebeu uma cópia e já de antemão deixa claro: o game é uma obra prima, mas não é para essageração chorona.

Gameplay ao extremo

A temática japonesa e enredo mais profundo (bem interessante) parecem dizer que o game será 'mais leve, casual'. Engano completo. Na pele do personagem Lobo, um shinobi que sobreviveu a guerra quando criança, você é responsável pela segurança de um jovem príncipe, que é capturado por um poderoso samurai durante o Período Sengoku. No embate, ele decepa seu braço e a partir daí Lobo recebe um braço prostético, que lhe confere novas habilidades e exploração de cenários, que inclui uma furtividade incrível.

Os combates exigem do jogador quase uma matemática dos movimento, caso contrário, é morte na certa
Os combates exigem do jogador quase uma matemática dos movimento, caso contrário, é morte na certa | Foto: Divulgação

Sekiro te leva ao limite desde os primeiro minutos de gameplay. Logo nos combates iniciais, você percebe um nível de dificuldade absurdo, mesmo com toda a habilidade e velocidade do seu personagem – que diferentemente da série Souls – possui 'stamina' infinita. Nada adianta, e arrisco dizer que morrer 50 a 100 vezes num mesmo local será algo comum na sua jornada. Um verdadeiro exercício de resiliência. Aliás, mesmo que você tenha a habilidade de ressuscitar no local onde parou (aí o título do jogo), no meio do combate, isso não lhe garante sucesso algum.

É engraçado como a empresa japonesa lida com isso. Na semana passada, inclusive, um artigo da revista Forbes chegou a dizer que a Sekiro precisava de um 'modo fácil'. Uma opinião quase ofensiva ao criador do gênero, diretor e CEO da FromSoftware, Hidetaka Miyazaki. Em entrevista recente a IGN Brasil direto do Japão, ele respondeu como faz o 'balanceamento entre o muito difícil e o impossível'. Ele riu e disse: "Quando eu consigo terminar o game, ele está finalizado e pronto para ir até as lojas". "Não considero meus jogos difíceis. Prefiro dizer que são desafiadores". Sei.

Desafio extremo ao encontrar cada subchefe ou chefe de fase. Aliás, os inimigos comuns também não podem ser subestimados. Basta um vacilo, um deslize de defesa, e você está morto. A reportagem jogou por horas, lutou, e a cada derrota o sentimento de frustração batia forte. Mas quando vencia, a realização era maior do que em qualquer game atual. Um sentimento único que remete à essência dos videogames.

Mais do que toda a técnica – quase uma matemática de ataques e defesas – para vencer os inimigos de forma calculada, Sekiro vai além. A beleza estética do game é incrível (imagens estonteantes em cada cenário), a história te prende desde o início (enigmática), e a furtividade (e verticalidade) dos cenários graças a garra no braço são a cereja do bolo de um game que tem tudo para se tornar um clássico. Isso tudo caso o jogador saiba a lidar com a morte. Acredite, ela será mais comum do que se imagina.

Game não é para jogadores “Nutella”

Além de jogar e se sentir desafiada com a dificuldade de Sekiro, a reportagem da FOLHA também ouviu outros jogadores que amam o gênero 'Soulsborne'. Para eles, não há dúvidas: os jogos da FromSoftware podem ser considerados de nicho e não é qualquer tipo de gamer que consegue enfrentar esse nível de desafio.

O jornalista Guilherme Batista joga videogame há 20 anos. Ele relembra que quando criança, na época do Mega Drive, o maior desafio que enfrentou foi o jogo Rei Leão. “Me lembro de ter ficado umas 12 horas jogando sem parar. Naquela época, poucos jogos salvavam e precisávamos voltar desde início quando morríamos”, relembra.

Anos se passaram e muitos consoles depois, Batista se deparou com o game Bloodborne, já no PS4. Num primeiro momento, ele se interessou pelo estilo sombrio do jogo. Mal sabia que iria se deparar com um nível de dificuldade absurdo. “Levei um 'chacoalhão'. Não sabia onde estava me metendo. Fiquei viciado na mecânica de gameplay.”

A partir daí jogou todos os Darksouls e está fritando em Sekiro. “Está me surpreendendo, tudo é muito desafiador. Sem dúvida, é um jogo de nicho e o marketing da empresa é justamente mostrar que o jogo não é para qualquer um. Sem dúvida, eu acho que há espaço para jogos mais difíceis, pela própria mística em cima do Dark Souls.”

Para o o técnico em eletrônica Everton Butarelli, que também conheceu a série Souls no PS4, hoje os jogadores “são muito Nutella” e não aguentam esse nível de dificuldade. “Morri e uma das chefes mais de 50 vezes tranquilamente. É um jogo que você tem uma curva de aprendizagem que vai aumentando. Lembra os games antigos de ninja, como Tenchu. Eu me arrisco a dizer que será o jogo do ano”, finaliza.