Cientistas constroem o corpo virtual
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segunda-feira, 30 de novembro de 1998
Paul Wymer Ciência Hoje
Órgãos virtuais já são uma realidade. Há alguns anos, Denis Noble, fisiologista da Universidade de Oxford (Inglaterra), começou a usar equações matemáticas para simular em computador a atividade celular do coração. O forte aumento do poder computacional desde então permitiu que, em vez de examinar a atividade de células isoladas por um pequeno período de tempo, Noble passasse a estudar várias células em paralelo em número suficiente para, de fato, criar um coração virtual.
O coração é particularmente adequado para descrições matemáticas porque os processos elétricos, químicos e mecânicos envolvidos nas contrações musculares cardíacas são relativamente bem compreendidos e podem ser descritos por equações precisas. Para construir um coração, Noble juntou seus esforços aos de Raimond Winslow, da Universidade Johns Hopkins (EUA) e Peter Hunter, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia). Este último já acumulou grande quantidade de detalhes estruturais, medindo e modelando o arranjo de todas as fibras musculares cardíacas, usando fatias muito finas de músculo cardíaco. Noble e Winslow usam esses dados para imitar o comportamento das fibras e assim simular o coração como um todo.
Para explorar sua invenção, os acadêmicos formaram uma companhia chamada Physiome Sciences. A indústria farmacêutica, por exemplo, pode testar os efeitos de seus remédios por meios eletrônicos antes de experimentá-los em seres humanos. No ano passado, a companhia suíça Roche pediu à Physiome para testar o Posicor, uma nova droga para combater a hipertensão. O órgão norte-americano que controla alimentos e drogas (FDA) havia expressado alguma reserva em relação ao medicamento, com base em mudanças anormais provocadas pelo Posicor na atividade elétrica do coração. Como é impossível testá-lo em humanos e as experiências em animais são pouco confiáveis, a FDA concordou em aceitar os testes no coração virtual da Physiome.
Etapas anteriores ao processo de desenvolvimento de fármacos podem beneficiar-se com o modelo, já que simulações em computador também permitem representar moléculas de fármacos. No futuro, será possível avaliar o efeito colateral de remédios destinados a outros órgãos no coração. Corações humanos virtuais e personalizados, capazes de incorporar características individuais dos pacientes, permitirão avançar ao máximo no tratamento personalizado com drogas. Pelo menos aparentemente a idéia não parece impossível.
A Physiome também está trabalhando em simulações em computador para pâncreas, rins e fígado. Um modelo de pulmões está sendo criado para estudar doenças como asma e enfisema. Vários outros laboratórios estão engajados em trabalhos semelhantes para outros órgãos. Noble estima que cerca de 60 pesquisadores, na Europa, nos EUA e no Japão, estejam trabalhando na modelagem computacional de partes do corpo. A maioria dos estudos, porém, está sendo feita de forma isolada em diferentes laboratórios, usando ferramentas matemáticas distintas e bases de dados incompatíveis.
Para superar esse problema, outro fisiologista, James Bassingthwaighte, da Universidade de Washington (EUA), lançou o Projeto Physiome. Tendo como modelo o Projeto Genoma Humano, o Physiome tenta congregar biólogos, geneticistas e programadores em computação para que adotem uma abordagem comum na modelagem de órgãos. Uma tarefa imediata do projeto é ajudar a entender as funções do conjunto de genes recentemente identificados. Compreender o que todos esses genes fazem em uma única célula já é um grande desafio; entender como eles funcionam em conjunto para afetar o comportamento do órgão é virtualmente impossível sem simulações sofisticadas, nas quais muitos compostos podem ser examinados ao mesmo tempo e os efeitos observados numa tela.
Bassingthwaighte tem em mente uma integração de simulações computacionais compatíveis, o que levaria ao último alvo do projeto: unir todos os órgãos virtuais em um corpo virtual. Mas isso ainda está longe de acontecer. Em curto prazo, um consórcio de equipes de pesquisa que trabalham com o coração e com todos os vasos sanguíneos do corpo foi formado, contando com o forte envolvimento de Noble e Hunter. Eles planejam ligar entre si seus modelos de coração e pulmões para prever como mudanças genéticas ou induzidas por drogas em um dos órgãos podem afetar o outro.
Usando tais modelos no futuro, uma nova geração de biólogos poderá colher uma vasta gama de informações sobre como os órgãos funcionam que nenhuma experimentação animal forneceria tão rapidamente. Novos tratamentos serão examinados por meios eletrônicos antes de serem testados em humanos, e milhares de compostos terão suas características farmacológicas avaliadas sem passar por um tubo de ensaio.