Washington, 02 (AE) - Há apenas um par de anos, algumas das afirmações que o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Luiz Felipe Lampreia, fez na semana passada, durante visita de três dias a Washington, teriam sido tomadas nos gabinetes oficiais americanos como prova de diabólicos desígnios brasileiros para sabotar os interesses e a influência dos Estados Unidos no continente. Falando a uma platéia de 150 pessoas, na quarta-feira, o chanceler brasileiro disse que "é muito cedo para o Brasil assumir um compromisso definitivo" em relação à criação da área de Livre Comércio das Américas, Alca, um projeto integração econômica continental de inspiração americana que está empacado porque não tem apoio político nos próprios EUA. O Brasil, disse o ministro, continuará a trabalhar nos grupos técnicos já existentes, mas não espera muito da próxima reunião ministerial da Alca, em abril do ano que vem, em Buenos Aires. No dia seguinte, em discurso a executivos de empresas na Câmara de Comércio dos EUA, Lampreia deu medida da importância que o Brasil atribui no momento ao assunto ignorando-o por completo.
Em reuniões públicas e privadas, o ministro da Relações Exteriores falou também sobre a iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso de realizar em Brasília, no segundo semestre, a primeira cimeira de líderes da América do Sul para coordenar políticas e ações de integração de infra-estrutura, de combate à corrupção, ao narcotráfico e à lavagem de dinheiro e de fortalecimento das instituições democráticas na região. Ao mesmo tempo, ele explicou que o Brasil vê a América Latina como "um conceito cultural, mas não um conceito operacional" e observou que o País quer ser visto e tratado como entidade própria e como uma nação que tem um papel regional e internacional positivo.
As dúvidas do Brasil em relação à Alca e o desejo do País de afirmar sua posição natural de liderança na América do Sul não são novidades. Nova, porém, é a tranquilidade com que Washington constatou essas posturas brasileiras. Em lugar de levantar dúvidas sobre as intenções do Brasil ou cobrar explicações, como faziam no passado, os americanos usaram a visita de Lampreia para fazer gestos calculados para sublinhar o que o embaixador dos EUA em Brasília, Anthony Harrington, chamaria, no final da visita, de "uma relação madura entre dois países".
Assim, na quinta-feira, Lampreia e a secretária de Estado, Madeleine Albright, autorizaram a conclusão de um acordo técnico que abre as portas para a viabilização comercial do Centro de Lançamentos de Alcântara, no Maranhão. O acordo, que deve ser assinado este mês, permitirá que empresas americanas de telecomunicações ponham seus satélites em órbita a partir de Alcântara. A mudança da política dos EUA, que coloca o Brasil no clube de países que oferecem serviços de tecnologia sensível e avançada, "é uma demonstração de confiança e foi feita em função da conduta exemplar do Brasil na área de não proliferação", explicou um funcionário americano, falando à Agência Estado. Até agora, Washington autorizava lançamento de satélites por empresas americanas apenas nos países signatários originais do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, um acordo internacional de 1986 ao qual o Brasil só aderiu em 1995.
No mesmo dia, por iniciativa americana, decidiu-se encorpar o mecanismo de consulta política bilateral já existente, que é a reunião semestral entre os chefes das diplomacias dos dois países. No futuro, esses encontros serão precedidos por discussões preparatórias entre os subsecretários políticos do Itamaraty e do departamento de Estado.
Paralelamente, os dois lados esmeraram-se para minimizar a briga sobre as restrições às importações de aço brasileiro nos EUA, que produziu faíscas no circuito bilateral durante recente visita ao Brasil do secretário do Comércio, William Daley. Lampreia disse que declarações sobre o mau estado das relações, que lhe foram atribuídas na época, foram exageros da imprensa. Daley, por sua vez, dedicou uma tarde inteira de sua agenda ao chanceler brasileiro, que incluiu uma partida de golfe.
"A visita do ministro evidenciou que existe hoje um elemento forte de confiança mútua que permeia toda a relação entre o Brasil e os Estados Unidos, e isso é novo", disse o embaixador brasileiro em Washington, Rubens Barbosa, na sexta-feira. "Os Estados Unidos estão agora acreditando na nossa palavra". A melhor indicação disso, segundo Barbosa, foi a reação americana à explicação que Lampreia deu sobre o sentido da cimeira sul-americana, que, como disse, "não tem por objetivo excluir ninguém".
"Em todos os encontros do ministro, não houve uma palavra de questionamento a essa iniciativa, nenhuma demonstração de desconfiança", disse o embaixador. "Os objetivos que o presidente Fernando Henrique Cardoso fixou para a reunião dos líderes são compartilhados pelos americanos e eles estão vendo essa reunião como algo positivo", acrescentou Barbosa. "Nós apoiamos a agenda que o presidente Cardoso propôs para a reunião dos líderes da América de Sul", confirmou Harrington.
Segundo Barbosa, a visita de Lampreia mostrou também uma nova qualidade no diálogo com Washington. "O Brasil vem aqui hoje não para ouvir preleção ou reprimendas sobre direitos humanos, meio ambiente, sistemas financeiros, mas vem para conversar francamente, ouvir e ser ouvido sobre todos os temas de interesse mútuo", disse o representante brasileiro. A conversa que Lampreia teve a sós, na quinta-feira, durante um almoço com a ministra do Comércio Exterior dos EUA, Charlene Barshefsky, por exemplo, foi quase que totalmente dedicada à análise do clima político para uma eventual tentativa de relançamento de uma nova rodada multilateral de negociações na Organização Mundial de Comércio, depois do fiasco de Seattle, em dezembro passado. Lampreia disse, depois do encontro, que recomendou cautela a Barshefsky, porque um novo fracasso poderia destruir a OMC.
"Temos hoje um diálogo aberto, cordial e franco, baseado num pensamento comum, sobre questões bilaterais e multilaterais no qual trocamos informações, levantamos temas, discutimos nossas diferenças de pontos de vista e exploramos novas áreas de cooperação", afirmou Harrington.
Há, de fato, sinais de intensificação e aprofundamento desse diálogo em novas frentes. Uma discreta visita que o comandante do Exército, o general Gleuber Vieira, fez a Washington no início da semana passada, por exemplo, resultou na criação de um grupo de trabalho bilateral de defesa que atuará na preparação da reunião hemisférica de ministros da Defesa, marcada para outubro, no Brasil, e na coordenação do diálogo entre as forças armadas dos dois países. O grupo de trabalho será instalado durante a primeira visita aos EUA do ministro da Defesa, Geraldo Quintão, em junho. Embora tenha objetivos limitados, esse grupo de trabalho é a primeira iniciativa formal de cooperação na área de segurança nacional entre o Brasil e os EUA desde que o governo do general Ernesto Geisel denunciou, em 1977, um acordo militar que os dois países formaram nos anos 50.
Num dos discursos que fez em Washington, Lampreia disse que o amadurecimento do diálogo entre os dois países não se deve apenas à democratização política do Brasil, à estabilidade e maior abertura econômica do País e ao bom relacionamento pessoal entre os presidentes Fernando Henrique e Bill Clinton. Numa crítica velada a administrações passadas e a altos funcionários do atual governo, que até recentemente viam o Brasil mais como rival potencial do que como um parceiro com interesses próprios e uma presença positiva nos assuntos regionais e internacionais, o chanceler atribuiu parte do crédito "à capacidade intelectual e psicológica do presidente Bill Clinton de ouvir e de engajar-se num debate, de compreender os pontos de vista e os interesses de outros países, e de ser convencido".
O esforço das duas chancelarias em realçar a mudança da qualidade do diálogo bilateral neste momento e elevá-lo a um novo patamar reflete, em parte, a preocupação de consolidar os ganhos obtidos na relação entre os dois países antes de Clinton deixar a Casa Branca, em janeiro do ano que vem.