Vargas Llosa, o jornal e a menina de Pataya
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quarta-feira, 07 de março de 2001
Para que serve um artigo de jornal? Às vezes, para nada, ou quase. Mas, se a hora for grande, o assunto, fundamental, e o autor, um grande escritor? Pode acontecer que, em meio a recados políticos ou econômicos com endereço certo ou exibições de famosos de qualquer tipo, o leitor se veja apanhado em uma trama, que também é uma obra de síntese, na qual fins, causas e acasos se reúnem em uma unidade temporal de uma ação total e completa, efetivamente havida.
A hora é grande porque há um mês vigora, no Brasil, a convenção 182 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que visa a eliminação imediata das piores formas de trabalho infantil, como prostituição, tráfico de drogas e trabalho escravo, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em fevereiro do ano passado.
O que pode significar esse passo fica claro em um texto do escritor peruano Mario Vargas Llosa, publicado no jornal espanhol El País, no dia 2 de novembro passado. Fala da condenação, naqueles dias, de um cidadão francês, pela Corte Superior de Paris, por um crime sexual cometido em 1994, no pequeno balneário de Pataya, na Tailândia, contra uma menina de onze anos, cujos serviços sexuais foram comercializados por sua própria tia.
Foi um precedente. Pela primeira vez chega ao Judiciário um caso de turismo sexual delituoso, graças a uma lei de 1998, que autoriza os tribunais julgar agressões sexuais cometidas no exterior, ainda que os fatos imputados ao acusado não sejam considerados delitos no país onde foram cometidos.
A menina, agora com 18 anos, localizada por organizações, como a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância, parte civil, no processo), que combatem a prostituição infantil, testemunhou, em Paris, em seção secreta, ao juiz, que obteve, com a colaboração da Suíça, as provas do crime. Um vídeo encontrado na casa de um voyeur, que intermediou e documentou a aventura do turista francês, junto com as confissões dos acusados, foram peças-chaves no processo.
É certo que um artigo serve para contar. Mas, não basta uma boa história. É preciso, também, que aquele que escreve conduza o que lê por uma estrada muito especial: a das palavras essenciais, imprescindíveis para conduzir verdades terríveis, doces ou impacientes, que despertam aquela atitude, frente à realidade, que faz das pessoas seres insatisfeitos e desassossegados com o mundo em que vivem.
Vargas Llosa chamou a atenção do leitor apressado de jornais para o sentido mais amplo da condenação, que foi notícia pelo mundo afora, quando também se falou algo da história do próprio criminoso, Amnon Chemouil, que, por sua vez, fora vítima de abuso sexual na infância e seu pai abafara o caso.
A história da menina de Pataya é terrível e maravilhosa ao mesmo tempo. É terrível porque mostra o quanto a miséria e a exclusão social oferecem espaço de desrespeito aos direitos humanos básicos. E é maravilhosa porque esta forma extrema de violência contra uma criança pobre, perdida num país, sabidamente tolerante, ou impotente, frente ao turismo sexual, encarou a justiça. O escrito de Vargas Llosa deu-lhe durabilidade, destacando-a do rol das notícias de destruição de crianças e adolescentes, que lemos todos os dias. E, esquecemos...
A serventia dos artigos de jornal, não estaria, então, no registro de vestígios de reconhecimento da dignidade humana? Esse, para além da beleza da escritura, talvez assinale que a propalada interdependência planetária possa fortalecer a luta pela expansão da justiça contra a barbárie e a impunidade para os crimes sexuais.
- Carly B. de Aguiar é jornalista e professora da UEL
