"Por que aconteceu com ela?" A pergunta feita no singular intriga juristas a cada processo de feminicídio que tramita no TJPR (Tribunal de Justiça do Paraná). O questionamento é tema do dossiê elaborado pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do tribunal e contou com a colaboração de pesquisadoras da UFPR (Universidade Federal do Paraná). A equipe analisou 300 processos judiciais dos 541 em andamento no período entre março de 2015 (quando entrou em vigor a lei do feminicídio) e março de 2020.

Imagem ilustrativa da imagem TJ analisa 300 processos de feminicídio em dossiê dos crimes cometidos no Paraná
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O feminicídio, qualificadora para o crime de homicídio quando ocorre no contexto de violência doméstica ou familiar ou de menosprezo ou discriminação à condição de mulher, foi apresentado como ‘assunto principal’ em 49% dos 300 processos analisados. Enquanto a pena para o crime de homicídio simples varia de 6 a 20 anos de reclusão, no feminicídio (homicídio qualificado) a pena varia de 12 a 30 anos.

Os processos analisados foram selecionados de forma aleatória e representam ocorrências registradas em todas as regiões do Paraná. Os casos não foram detalhados ou identificados pela equipe.

A desembargadora do TJPR, Priscilla Placha Sá, coordenadora da pesquisa, afirma que o objetivo do estudo é intensificar a implantação de medidas protetivas e verificar características dos crimes cometidos no Estado.

Em 29 dos 300 casos, o crime ocorreu na presença de descendentes ou ascendentes da vítima. Em alguns casos, os filhos tentaram interferir e acabaram se tornando vítimas secundárias ou até conseguiram impedir o feminicídio. A presença de outras pessoas na cena do crime, além da vítima e do agressor, foi registrada em 190 processos analisados, o que representa 60% do total.

"Essa é uma característica que demonstra que os autores têm poucos freios. É um pouco do que a gente chama de cenário do feminicídio. Se a gente conjugar a questão da presença de outras pessoas, dos familiares, tem um gráfico que indica o dia e horário em que há o maior risco de ocorrências. Infelizmente, é quase que uma previsão de que esse fato vai acontecer. Conjugamos com isso uma outra categoria que a gente chama de assinatura. Há pesquisadoras como a Rita Segato e a promotora Valéria Fernandes, de São Paulo, que descrevem esse fenômeno como uma assinatura, ou seja, tanto no corpo da vítima, as lesões, o instrumento utilizado, como também na própria cena do crime com portas quebradas, abajur, janela, móveis, fio de secador desencapado utilizado contra a vítima. O ambiente deixa muitas pistas”, detalha.

Considerando os processos analisados, 66% dos crimes foram cometidos no ambiente doméstico ou íntimo, principalmente em casa durante o final de semana (21% no sábado e 19% no domingo). Entre os horários, 33% ocorreram durante a noite (entre 19h e 23h59), 28% durante a madrugada (entre 0h e 5h59) e 27% durante a tarde (entre 12h e 18h59).

Pouco mais da metade dos agressores (55%) utilizaram armas brancas como facas e facões. O dossiê apontou ainda que 47% dos autores de feminicídio possuem ensino fundamental incompleto, sendo 33% com idade entre 18 e 29 anos e 32% entre 30 e 39 anos.

Já entre as mulheres, 35% possuíam idade entre 18 e 29 anos e 31% entre 30 e 39 anos. A escolaridade das vítimas era de ensino médio completo (31%) e ensino fundamental incompleto (30%). Boa parte das lesões ocorreu na região da cabeça e no tórax ou abdômen.

“O que nos chamou a atenção foram 21 casos em que há circunstâncias muito peculiares. Desses 21, nove tinham, o que a gente poderia dizer, uma assinatura muito particular envolvendo recursos de extrema crueldade. Em quatro desses 21 casos houve a indicação de que o autor do fato tinha graves problemas mentais. Então quando a gente pensa 'Ah... o feminicida é um doente', na verdade não. Ele não é. De 300 casos, somente em quatro houve essa indicação. [...] De alguma maneira, você percebe que mesmo aí houve os signos que a gente chama de dominação masculina, do patriarcado”, ressalta.

A desembargadora também conduz o projeto de pesquisa ‘Todas as mulheres importam’, na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Estudantes da graduação e da pós-graduação participam da proposta para avaliar o impacto jurídico e social de crimes cometidos contra as mulheres. A pergunta ‘por que aconteceu com ela?’ busca chamar a atenção para a necessidade de políticas públicas mais efetivas para romper o ciclo de violência que pode atingir a todas, sem distinção.

"Quando ocorrido, isso é uma tragédia mesmo os feminicídios tentados. Nós mapeamos o que havia de informações nos autos, por exemplo, sobre cirurgias que as vítimas precisaram fazer, de colocação de próteses, sonda, etc. Para a própria vítima e para a família raramente essa questão deixa de gerar consequências muito terríveis. O que é dramático e que passou a visibilizar a partir da percepção social do fenômeno da violência doméstica é que de fato nós, infelizmente, somos uma sociedade marcada por uma perspectiva de violência machista e estrutural. [...] Ao praticar um feminicídio é como se o autor tivesse emitindo uma mensagem de que outros casos também podem acontecer”, avalia.

“O próprio sistema de Justiça já está atento que o feminicídio pode ser a um só tempo previsível e também evitável. Imaginamos que, por isso, um estudo como esse pode auxiliar, dentre uma série de outras medidas, sobretudo em uma perspectiva de prevenção que é o que na verdade nós queremos. Não queremos que as mulheres sejam atingidas por feminicídios tentados e menos ainda consumados”, conclui a coordenadora do dossiê.

De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 17 mil casos de lesão corporal em decorrência de violência doméstica foram registrados em 2019 no Paraná, um aumento de 22% em relação ao ano anterior.

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Mais de 30 mil medidas protetivas foram concedidas em 2020 no PR

As medidas protetivas concedidas às mulheres vítimas de violência doméstica são consideradas um grande avanço para conter os crimes de feminicídio. No ano passado, mais de 30 mil foram deferidas para a proteção das mulheres em todo o Paraná. A informação foi repassada pela desembargadora do TJPR, Priscilla Placha Sá.

“É uma questão muito relevante. Há uma série de estudos que apontam que as medidas protetivas estão cumprindo o nome que as batiza. Se a gente imaginar que nessa amostra de 300 casos aproximadamente 30% das mulheres foram atingidas mesmo tendo medidas protetivas, se você projetar para a quantidade de medidas protetivas que foram deferidas, você vê um nicho de evitabilidade muito significativo”, considera.

Em Londrina, 1.258 medidas protetivas foram solicitadas pela Delegacia da Mulher durante o ano passado. Em 2019, esse número chegou a 1.307. Segundo a delegada Carla Gomes de Mello a crise financeira, econômica e social agravadas pela pandemia da Covid-19 resultaram no aumento da violência contra a mulher. No entanto, o isolamento social fez com que as mulheres deixassem de procurar a delegacia para oferecer denúncia.

Já a quantidade de inquéritos abertos saltou de 1.177 (em 2019) para 1.831 (em 2020). O reforço na equipe que no ano passado contou com duas delegadas deu celeridade ao andamento de denúncias oficializadas anteriormente.

“O número de descumprimento de medidas, principalmente, que chega a casos graves é muito inferior se comparado ao número total de medidas concedidas e respeitadas. É interessante pedir a medida protetiva porque aí a gente consegue ter outras medidas posteriores como a prisão ou a monitoração eletrônica que podem fazer com que o outro pare e a maioria para, nesses casos”, alerta.

A delegada lembra ainda que o ciclo de violência contra a mulher começa com xingamentos, cenas de ciúme, humilhação da companheira e dominação sobre ela. Em seguida, empurrões e ameaças passam a fazer parte da rotina. Os desentendimentos resultam em lesões mais graves que podem culminar em um feminicídio.

A Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher em Londrina envolve a Delegacia da Mulher, o CAM (Centro de Referência e Atendimento à Mulher), juízes, promotores, profissionais do IML (Instituto Médico-Legal), dos hospitais, do Numape (Núcleo Maria da Penha), entre outros órgãos. O município também conta com uma casa abrigo que pode ser utilizada pelas vítimas nos casos de maior gravidade.

A Delegacia da Mulher fica na rua Rua Almirante Barroso, 107. O horário de atendimento é das 8h30 às 12h e das 13h30 às 17h30. Orientações e agendamentos podem ser feitos por meio do WhatsApp da delegacia (43) 3322-1633.