“É a correção de anos de injustiça com as pessoas que não têm a visão de um dos olhos”. Assim a jornalista e ativista Amália Barros avalia a aprovação do Projeto de Lei 1615/19 que reconhece as pessoas monoculares como pessoas com deficiência. “Quem perde um braço é menos deficiente do que quem perde dois? Não. Com a questão da visão é a mesma coisa”, compara.

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. | Foto: Divulgação

O projeto, que recebeu sanção presidencial na última segunda-feira (22), após ter sido aprovado na Câmara no dia 2 de março, de relatoria da deputada Luisa Canziani (PTB-PR), é resultado de anos de reinvindicações dos monoculares para serem incluídos nacionalmente na legislação sobre pessoas com deficiência.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) classifica a visão monocular como uma deficiência visual em razão da perda da visão binocular (nos dois olhos) no processo de formação da visão. “A visão monocular só permite examinar a posição e a direção dos objetos dentro do campo da visão humana em um único plano. Só permite reconhecer nos objetos a forma, as cores e tamanho. A fotografia simples é uma reprodução da visão monocular”, conta Amália Barros, que é uma pessoa monocular.

“A visão binocular é que permite a percepção de profundidade, que é dada pela diferença de ângulos com que as imagens são percebidas”, apresenta a jornalista. “Ao receber dos olhos duas imagens de um mesmo objeto, a partir de pontos de vista distintos, o cérebro as interpreta como imagens que receberia se observasse o objeto diretamente, e as funde em uma única imagem tridimensional”, aponta. A mão sobre um dos olhos é o símbolo que representa as pessoas com deficiência visual que enxergam com apenas um olho.

A partir da sanção do texto, monoculares com baixa renda poderão requerer o BPC (Benefício da Prestação Continuada), pago a idosos e pessoas com deficiência com rendimentos de até um quarto de salário mínimo por pessoa (R$ 275 por mês). O valor do BPC é de um salário mínimo por mês. Análises dos técnicos do governo estimam que cerca de 400 mil pessoas com visão monocular se encaixam nos critérios de renda do BPC.

Além disso, trabalhadores monoculares poderão ser enquadrados na Lei de Cotas para Deficientes, que prevê que empresas com cem ou mais funcionários tenham entre 2% e 5% de trabalhadores portadores de deficiência; e terão reserva de percentual de cargos e de empregos públicos ofertados em concursos públicos e em processos seletivos no âmbito da administração pública federal direta e indireta.

Os ativistas da causa monocular comemoram a sanção. “Em 2009, tivemos um projeto federal que não chegou a ser aprovado”, relembra o professor Ednilson Cunico, que tem deficiência no olho esquerdo. “Foi uma súmula do STJ (Supremo Tribunal de Justiça), que deu causa favorável a uma demanda de uma pessoa monocular que fez um concurso público e queria participar da cota de PCDs (pessoas com deficiência). A partir daí, começou toda uma luta dos monoculares para vir aprovando leis”, conta.

Cunico é integrante de um grupo de monoculares no WhatsApp que foi criado em 2019 e busca ampliar o reconhecimento da causa em todo o Brasil. Eles se articulam para reivindicar o amparo de leis municipais para garantir que tenham os mesmos direitos das demais pessoas com deficiência.

“Temos aí a Lei estadual desde o ano de 2011 [no Paraná], mas quando nós que somos monoculares vamos em algum lugar exigir algum direito que a pessoa com deficiência tem, eles não nos reconhecem plenamente enquanto pessoas com deficiência”, conta o professor, que é da cidade de Campo Largo (Região de Curitiba).

O grupo já viajou para diversos municípios para articular-se com outros monoculares e contribuir para reivindicar seu reconhecimento. “[Como resultado desse trabalho] existem 33 municípios atualmente, no Paraná, que ratificaram a lei estadual, e que implementaram uma lei complementar para que seja reconhecida ainda mais a questão monocular”, afirma.

A deputada Luisa Canziani, em texto de assessoria de imprensa, confirma. “Diversas instâncias dos poderes Executivo e Judiciário já estenderam à pessoa com visão monocular os mesmos direitos assegurados às pessoas com deficiência, medida inquestionavelmente oportuna e justa. Agora, este Parlamento ratificou posicionamento já consolidado em nossa sociedade e reconheceu definitivamente que a pessoa com visão monocular faz jus aos direitos conferidos à pessoa com deficiência”, reitera.

O professor comenta sobre as dificuldades que pessoas monoculares enfrentam no mercado de trabalho. “Não podemos trabalhar com produtos químicos muito fortes [para não danificar a retina], ter carreira militar, no exército nem na polícia”. Os monoculares não podem, também, ser motoristas profissionais e ter carteira de motorista de categorias C, D e E (para conduzir ônibus, transporte de cargas, dentre outros).

Cunico relata, ainda, as dificuldades de reinserção social para aquelas pessoas que se tornam monoculares ao longo da vida. “No nosso grupo tem uma pessoa que era motorista de um ônibus de turismo, e ele sofreu um acidente e acabou perdendo um olho." Ele explica que muitos acabam precisando trocar de carreira por não poder mais exercer suas profissões anteriores.

Além disso, há os impasses do dia a dia. “Quando vamos atravessar uma rua, subir ou descer escada, temos muita dificuldade pois não enxergamos profundidade. É um problema quando há um meio fio muito alto”, comenta. “Se as pessoas vêm me cumprimentar e estendem a mão do lado esquerdo, às vezes eu não percebo, me tomam por antipático”, relata.

O professor comenta que, com o reconhecimento como pessoa com deficiência, muitos desses obstáculos seriam reparados. “Seriam a questão do estacionamento em vaga especial, a prioridade no atendimento na saúde pública, dentre outros”, exemplifica. Segundo ele, os monoculares têm complicações para estacionar nas vagas comuns.

Com a sanção do Projeto de Lei, que foi batizado com o nome de Amália Barros, os monoculares esperam poder se inserir melhor nos espaços sociais e enfrentar menos preconceitos. “Serão os mesmos direitos que toda pessoa com deficiência têm”, reitera a jornalista. Ednilson Cunico também defende que a divulgação da causa contribuiu para a solidariedade entre os diversos grupos de pessoas com deficiência, e defende a importância da colaboração da sociedade em geral na luta pela inclusão.

*Sob supervisão de Fernanda Circhia - Editora Online