SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) - Séculos antes do contato com os europeus, grupos indígenas transformaram parte do deserto do Atacama, no Chile, numa rica zona agrícola, onde era possível colher milho, abóbora e feijão em abundância. O segredo por trás de tal produtividade era o uso do guano, um fertilizante natural que os nativos obtinham na costa do Pacífico.

Esse surpreendente cenário de agricultura intensiva pré-colombiana está sendo redescoberto graças à composição química peculiar das lavouras do deserto. Os vegetais cultivados no Atacama, mostra um estudo que acaba de sair na revista científica Nature Plants, carregam em seus átomos de nitrogênio uma assinatura tipicamente marinha --o que faz sentido quando se considera que o guano nada mais é que o acúmulo de excrementos de aves comedoras de peixes.

Tal assinatura química, aliás, reflete-se até na composição dos ossos das pessoas que viviam no deserto por volta do ano 1000 d.C., contou à reportagem a coordenadora do estudo, Francisca Santana Sagredo, da Escola de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica do Chile. "Os níveis são semelhantes aos dos inuítes [popularmente conhecidos como esquimós, que só comiam animais marinhos]-- e são inclusive mais altos", diz ela.

A produção de alimentos no Atacama pré-histórico já era conhecida dos arqueólogos. Segundo a pesquisadora, um fator que permitia a agricultura na região era a presença de rios em alguns vales do deserto, bem como fontes d'água em oásis e certos mananciais subterrâneos. "Também é provável que a atividade agrícola tenha acontecido em zonas que hoje são mais áridas, mas tinham água no passado", explica ela.

A disponibilidade de mananciais, no entanto, não resolvia outro problema crucial da área: a falta de nutrientes no solo. Para remediar isso, seria possível usar, por exemplo, esterco de lhama, animal domesticado por volta de 4.000 anos atrás pelos povos andinos.

No entanto, tudo indica que não foi esse o "ingrediente mágico" da agricultura do Atacama. A chave para chegar a essa conclusão é o teor de nitrogênio-15, uma variante mais pesada do elemento químico (a forma normal dele, mais leve, é o nitrogênio-14 -- a diferença é que o nitrogênio-15 carrega uma partícula extra em seu núcleo). Acontece que o nitrogênio-15 tende a se acumular cada vez mais no organismo conforme se sobe de nível trófico -- ou seja, de plantas para herbívoros, de herbívoros para os carnívoros que os comem, desses carnívoros para os carnívoros que os devoram etc.

A presença de nitrogênio-15 nas plantas cultivadas e nos esqueletos humanos do Atacama é tão alta que seria impossível explicá-la com o uso de fezes de lhama (um mero herbívoro) como fertilizante. Mas ela é totalmente compatível com o emprego do guano. Justamente por derivar dos excrementos de aves aquáticas, as quais costumam comer peixes carnívoros inseridos numa cadeia alimentar marinha complexa, o fertilizante é riquíssimo em nitrogênio-15.

Para ter acesso ao recurso, os habitantes do deserto provavelmente precisavam se inserir numa rede regional de comércio que atravessava cerca de 100 km de território rumo ao litoral, alcançando ilhas com grandes colônias de aves como pelicanos e atobás (veja infográfico), principais "produtoras" de guano. O controle do transporte e da distribuição do fertilizante deve ter contribuído para a formação de sociedades complexas, com hierarquias e desigualdades e uma densidade demográfica relativamente alta, diz a pesquisadora chilena.

O curioso é que o sistema do Atacama prefigurou algo que ganharia escala mundial no século 19. Antes da invenção de fertilizantes artificiais, o guano do Chile, do Peru e de outras regiões do mundo se tornou um recurso agrícola cobiçado no mundo todo, conhecido como "ouro branco".