O Brasil ainda tentava superar a triste história da menina de dez anos que engravidou no Espírito Santo após ser abusada sexualmente pelo tio quando um novo capítulo da “guerra” ideológica que tomou conta do tema trouxe uma nova perspectiva no atendimento da equipe médica para esses casos, em que o aborto é permitido e realizado pelo SUS. Publicada no final de agosto pelo Ministério da Saúde, uma portaria trouxe aos profissionais de saúde novas atribuições, como a obrigação de comunicar a polícia do episódio e de oferecer à vítima a possibilidade de visualizar a imagem do feto, além da aplicação de um questionário.

Para a advogada Jaqueline Amendola Heinzl, coordenadora da Comissão da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), subseção Londrina, a portaria extrapola o papel dos servidores da saúde e será responsável por produzir ainda mais sofrimento às vítimas. Integrante do projeto OAB por Elas e voluntária do Numap (Núcleo Maria da Penha) da UEL, Heinzl destaca "nenhuma mulher quer realizar um aborto porque acha 'bonito'".

LONDRINA, PR, 22.08.2020 - Ato Pró Aborto, Frente Feminista De Londrina - Ato com performance "Um Estuprador em seu caminho" no Anfiteatro do Zerão. Frente Feminista de Londrina levanta suas bandeiras em prol da legalização do aborto, seguro e gratuíto, também protestam contra os recentes casos de violência sexual  revelados nos últimos dias no Brasil.
Londrina 22/08/2020. - (Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress)
LONDRINA, PR, 22.08.2020 - Ato Pró Aborto, Frente Feminista De Londrina - Ato com performance "Um Estuprador em seu caminho" no Anfiteatro do Zerão. Frente Feminista de Londrina levanta suas bandeiras em prol da legalização do aborto, seguro e gratuíto, também protestam contra os recentes casos de violência sexual revelados nos últimos dias no Brasil. Londrina 22/08/2020. - (Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress) | Foto: Outras

“A Saúde não tem esse papel. Não cabe ao médico ou a quem está prestando o primeiro atendimento. Até porque a lei, o Código Penal, já protege esse médico caso a vítima tenha mentido. Há o artigo 20 do Código Penal. E já é um sofrimento muito grande. Quem está de fora acha que é muito fácil, mas é de dar dó. Essa mulher não fica igual para o resto da vida. Parece que até o sofrimento pelo estupro em si é menor do que o de tirar o bebê", lamenta.

Mesmo tendo sido amplamente rejeitada pelos profissionais de saúde, a medida foi considerada uma “vitória” por movimentos contrários ao aborto. Assim que publicada, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no entanto, a classificou como “ilegal” e “absurda” e defendeu que o governo recue. Após a publicação, Maia sugeriu derrubar a portaria na própria Casa ou no STF (Supremo Tribunal Federal). Uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) sobre o tema, de autoria é do Ibross (Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde), já chegou à corte.

No Congresso, também entrou em tramitação o Projeto de Decreto Legislativo 381/20, que susta a portaria e coloca novamente a ala “feminista”, formada por dez deputadas do PCdoB, Psol, PT e PSB, no protagonismo pela garantia da vigência das regras anteriores.

Do lado oposto, o coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, deputado federal Diego Garcia (Pode-PR), diz que considera positivas as novidades trazidas com a 2.282 e acrescenta que, na opinião dele, "não existe aborto legal no Brasil, apenas hipóteses em que o crime é despenalizado". Relator do Estatuto da Família, ele considera inaceitável que o “crime, ainda que despenalizado, seja realizado pelo SUS".

"A nova portaria do Ministério da Saúde é necessária, pois ajuda a combater os estupradores e evita a impunidade do estupro. Ser contra essa portaria é ser a favor dos estupradores. Ela também era necessária para adequar a política do Ministério da Saúde à Lei 13.931/20. Não acredito que essa portaria possa aumentar o número de abortos clandestinos. Para diminuir esse número devemos lutar firmemente contra todo tipo de aborto e dar mais apoio às mães, valorizando a maternidade e a primeira infância. É isso o que eu faço, e é por isso que eu luto", declarou o parlamentar, que é da região de Jacarezinho e representa o movimento da Renovação Carismática.

Questionada na tarde desta sexta-feira (11), a Sesa (Secretaria de Estado da Saúde) informou que o conteúdo ainda está "em análise" pelos técnicos da pasta antes que qualquer orientação seja enviada às regionais de saúde. Já o CRM-PR (Conselho Regional de Medicina do Paraná) decidiu aguardar a deliberação do CFM (Conselho Federal de Medicina) para se manifestar.

O MPF (Ministério Público Federal), Defensoria Pública da União e os governos de 12 estados expediram uma recomendação administrativa às secretarias de saúde e ao SUS orientando que a exigência sobre notificação aos órgãos de segurança não deve comprometer o atendimento, servindo apenas para fins estatísticos. Os 12 estados são: Acre, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Sergipe e Tocantins.

ACOLHIMENTO

Em Londrina, o Programa Rosa Viva é o principal responsável pelo acolhimento de mulheres vítimas de estupro. Sediado na Maternidade Infantil Lucilla Ballalai, orienta para que as vítimas procurem o atendimento em até 72 horas depois do crime visando maior eficácia na imunização contra DSTs (doenças sexualmente transmissíveis).

O HU (Hospital Universitário) de Londrina é a única instituição da cidade cadastrada na Secretaria Municipal de Saúde para realizar a interrupção das gestações diante, também, das outras duas situações permitidas: risco de vida para a gestante e anencefalia do feto. Segundo a assessoria de comunicação do HU, foram realizados, em média, 13 abortos por ano na última década em gestações oriundas de estupros. No Paraná, hospitais universitários de Maringá, Ponta Grossa, Cascavel e Curitiba também estão autorizados a realizar o procedimento.

Em todo o País, levantamento do mapadoabortolegal.org mostra que, de 176 hospitais consultados, 64 não fazem o procedimento, 20 deixaram de realizar nos últimos anos e 42 seguem realizando.

"CRUELDADE"

“Como uma portaria do Ministério da Saúde vai estar lidando com um tema de teor policial? Sequer este governo tem a noção de que a missão dos serviços de saúde é o cuidado, o acolhimento”, critica a docente do programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Silvana Mariano.

O apontamento da professora, defensora de maior autonomia para as mulheres, faz referência ao trecho que determina à equipe médica a autoridade para notificar a polícia sobre o caso de estupro mesmo sem o consentimento da vítima, o que é garantido pela Lei Federal 13.931/19. Como consequência, a previsão é que muitas mulheres escolham meios ilegais para fazer o aborto em razão do medo de sofrerem ainda mais nas mãos dos agressores, que são, na maioria das vezes, pessoas de seu convívio familiar e social, aponta a docente.

Dados mais aprofundados sobre a oferta do serviço no País podem ser encontrados no site mapadoabortolegal.org, uma iniciativa entidade nascida em Londres, Artigo 19.

“E como o aborto inseguro está entre as principais causas de morte no Brasil, dificultar essa prática pode fazer com que elas busquem opções fora dos serviços de saúde, especialmente as mais pobres, as negras e as jovens”, avalia.

O texto também determina que a equipe médica preserve “possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, inclusive fragmentos do embrião ou feto, para levar à identificação genética do autor do crime”. Traz ainda novas exigências como a oferta para que a gestante veja a imagem do feto ainda em seu ventre e que a vítima responda a um questionário sobre episódio de violência.

A decisão do Ministério da Saúde de dificultar” a oferta de abortos legais acata sugestão da Associação Guadalupe feita à Defensoria Pública da União em fevereiro para revogação da norma técnica 1.508/2005 que faz o regramento legal do tema. A entidade de São José dos Campos (SP) promove o acolhimento de gestantes em situação de vulnerabilidade social e emocional.