Imagem ilustrativa da imagem Política nacional sobre drogas gera polêmica entre especialistas
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Uma nova política nacional sobre drogas, instituída por decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL), está em vigor desde o início de abril e trata de uma série de questões, incluindo medidas de repressão e prevenção. Uma mudança especialmente importante envolve o tratamento de pessoas com dependência química. A nova política reduz a importância da abordagem da redução de danos e determina como objetivo principal a abstinência — ou seja, que os pacientes sejam afastados por completo das substâncias. Para especialistas ouvidos pela reportagem, isso representa um retrocesso para a área e os resultados serão negativos.

Segundo o secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro Júnior, do Ministério da Cidadania, a avaliação é que a redução de danos não vinha trazendo resultados, enquanto a abstinência teria mais evidências de melhora para a qualidade de vida dos pacientes. Ele diz que a redução de danos vinha norteando tanto a estratégia quanto o objetivo final do tratamento no Brasil. “Basicamente, até agora, tinha-se um samba de uma nota só”, criticou, em entrevista à FOLHA. “É completamente equivocado ter uma política nacional sobre drogas focada exclusivamente em uma única abordagem terapêutica e também ter como objetivo a redução de danos.”

Cordeiro Júnior lembrou que uma das características dos dependentes químicos é justamente a falta de controle sobre o uso — o que tornaria estratégia equivocada. “Queremos buscar a abstinência, a recuperação, a sobriedade do indivíduo”, explicou.

Com a nova política, a redução de danos passa a ser uma estratégia eventual na promoção da abstinência, “apenas em situações específicas”, enquanto os principais meios para se chegar ao objetivo passa a ser o acolhimento em comunidades terapêuticas e a internação em hospitais, que impediriam o acesso do indivíduo às drogas.

COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

Uma das medidas do governo será ampliar o acesso dos pacientes a comunidades terapêuticas, em complemento aos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). A nova política prevê “estimular e apoiar, inclusive financeiramente, o trabalho de comunidades terapêuticas, de adesão e permanência voluntárias pelo acolhido, de caráter residencial e transitório, inclusive entidades que as congreguem ou as representem”. O contrato de prestação de serviços destas instituições é feito diretamente com o governo federal.

De acordo com Cordeiro Júnior, o número de vagas aumentou de menos de 3 mil em 2018 para 11 mil no início de 2019 em todo o país. No Paraná, há 777 vagas distribuídas em 46 comunidades terapêuticas, segundo informações do Ministério da Cidadania.

O secretário explicou que elas precisam cumprir exigências técnicas para receber o financiamento do governo. O gasto por vaga é de cerca de R$ 1.117 por mês. Ainda em 2019 deve ser publicado um novo edital para ampliar vagas, mas ele não informou a quantidade.

PSICÓLOGA VÊ EQUÍVOCO

Na avaliação da psicóloga Célia Mazza de Souza, a nova política representa um retrocesso. “A gente ainda nem conseguiu efetivar, de fato, a política de redução de danos e de serviços não asilares, que não segreguem as pessoas da sociedade”, disse.

Para a psicóloga, é um equívoco considerar que a redução de danos não promove a abstinência. “Há pesquisas de fora do país com pessoas que acessaram programas de redução de danos e passaram a ter consciência de seu uso. Ao ter um cuidado maior com sua saúde, elas acabaram escolhendo a abstinência”, contou.

Souza também questionou a efetividade da interrupção do uso de substâncias por meio da internação ou acolhimento. “Já trabalhei em instituição psiquiátrica, com pacientes internados, e era comum a pessoa sair da internação e, no mesmo dia, atravessar a rua para ir ao bar ou ao mocó”, disse, colocando em dúvida também a capacidade de as comunidades terapêuticas manterem estrutura e pessoal para dar o devido acolhimento e atendimento. “A maioria é focada na questão religiosa e algumas envolvem trabalhos nem sempre terapêuticos, com uma recomendação equivocada de terapia ocupacional que envolve atividades que se aproximam da exploração — como colocar as pessoas para vender produtos para manter a própria entidade.”

Para a especialista, não há controle suficiente a respeito do atendimento oferecido pelas comunidades terapêuticas, apesar do financiamento público. Ela diz ver interesse econômico por parte de grupos religiosos com influência sobre o governo federal na escolha da nova política.

CATASTRÓFICA

O professor de Saúde Coletiva na UFPR (Universidade Federal do Paraná), Marcelo Kimati, também considera que a nova política nacional sobre drogas, no que se refere ao foco nas comunidades terapêuticas, beneficia grupos religiosos, que identificariam nas drogas “uma questão moral”, “passível de ser abordada através de práticas de doutrinação”. “Neste sentido, o interesse é duplo — o tratamento do uso de drogas interessa para fins de conversão e capitalização destas entidades com recursos públicos. Não é principalmente religiosa, mas potencialmente religiosa”, detalhou.

Para Kimati, ex-diretor de Saúde Mental e Política de Drogas em Curitiba, a aposta em instituições privadas de cunho religioso é “catastrófica”. Ele diz que trata-se de um modelo de assistência com custos mais altos por usuário e menor número de pessoas atendidas. “Do ponto de vista epidemiológico, com relação à questão populacional do uso de drogas, o impacto que o aumento de financiamento de comunidades terapêuticas vai trazer para a questão assistencial a usuários de drogas é muito próximo a zero”, avaliou. “Ainda que possa mudar a vida de certas pessoas, do ponto de vista epidemiológico isso vai ser insignificante”, criticou.

O professor também identificou na nova política uma “diretriz conservadora” influenciada por entidades médicas interessadas no financiamento público de instituições privadas de tratamento — “clínicas de internação, hospitais psiquiátricos e ambulatórios de psiquiatria que têm como foco a abordagem medicamentosa” e são caracterizados pela adesão de “um pequeno percentual de usuários que aceita a proposta”. Segundo Kimati, trata-se da ampliação do financiamento hospitalar “aos moldes do modelo existente na década de 1970”.

Para o especialista, os resultados da nova política serão negativos, com consequências como o aumento da criminalidade e de mortes associadas às drogas. “Do ponto de vista assistencial, teremos como repercussão, não só do decreto, mas de outras ações que o governo vem desenvolvendo desde 2017, a diminuição do acesso ao cuidado, uma ‘seleção’ de usuários que aderem ao tratamento, particularmente com exclusão de usuários de drogas ilícitas do sistema como um todo, além de um aumento de mortalidade em fenômenos associados ao consumo — como, por exemplo, pelo aumento de criminalidade em locais em que vêm sendo desenvolvidas ações de redução de danos”, avaliou.

'NÃO É VERDADEIRA'

Enquanto críticos da nova política do governo para a área apontam a falta de evidências da efetividade do trabalho de comunidades terapêuticas, o secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro Júnior, do Ministério da Cidadania, diz que o que ocorre é o contrário. “A argumentação de que a redução de danos vinha funcionando não é verdadeira”, disse.


“Se a gente olhar os indicadores, vemos aumentos no uso de drogas no Brasil nos últimos anos, aumento de cracolândias e moradores de rua em dependência química”, argumentou — citando, ainda, o aumento da incidência de suicídios causados por dependência química e do alto número de homicídios no país, que considera um efeito indireto. “O cenário da política antidrogas no Brasil estava muito ruim e precisava mudar”, disse.

Acerca da efetividade do tratamento das comunidades terapêuticas, ele citou como evidências resultados de uma pesquisa de um psicólogo ligado à Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, Pablo Kurlander, em tese de doutorado em Saúde Coletiva na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho).

Cordeiro Júnior disse, ainda, que o edital para as vagas de atendimento em comunidades terapêuticas determinou que os pacientes não podem deixar de ser acolhidos por seu credo religioso e que, embora atividades relacionadas ao “desenvolvimento da espiritualidade” possam ser ofertadas, os indivíduos não são obrigados a participar. “Não cabe a possibilidade de proselitismo religioso durante o acolhimento”, disse.

EM LONDRINA

Diretora de Serviços Complementares de Saúde da secretaria de Saúde de Londrina, Claudia Denise Garcia conta que o município ainda procura se adaptar à nova política nacional. Ela contou que a prefeitura soube por meio das próprias comunidades terapêuticas que houve ampliação de vagas por parte do governo federal — além das que já eram pagas pelo município. Segundo Garcia, houve a oferta de 80 novas vagas.

A diretora explicou que a possibilidade de acolhimento de usuários sem passar pelo encaminhamento da rede municipal cria dificuldades de controle, já que os pacientes de comunidades terapêuticas contam com apoio do serviço de saúde do município, inclusive medicação. “Como foi uma coisa feita de cima para baixo, a gente ainda não consegue entender o impacto”, explicou.

Garcia conta que o Comad (Conselho Municipal de Políticas Sobre Álcool e Outras Drogas) decidiu pela manutenção do financiamento à redução de danos em Londrina. “A gente sabe que o uso de drogas e álcool não algo simples. Não é só abstinência. Pode-se até chegar nela, mas enquanto não se chega, é preciso manter a linha da redução de danos”, diz.