Morreu na noite deste domingo (2), aos 101 anos, a imigrante russa e pioneira de Londrina Maria Brauko. Protagonista de uma saga que começou com a fuga do regime comunista e cujo roteiro atravessa países como Cazaquistão e Índia, Brauko morreu de causas naturais. O velório foi realizado na manhã desta segunda-feira e o corpo dela foi sepultado no Cemitério Parque das Oliveiras. Maria Brauko teve quatro filhos, sendo que dois já são falecidos, além de sete netos e nove bisnetos, e era viúva de Theodoro Brauko.

A imigrante sempre buscou manter vivas as tradições russas
A imigrante sempre buscou manter vivas as tradições russas | Foto: Acervo Pessoal

Nora da pioneira, Maria do Carmo Brauko lembrou à FOLHA que a imigrante sempre buscou manter vivas as tradições russas, o que não a impediu de desenvolver grande carinho e admiração por Londrina e por elementos da cultura brasileira. “Ela dizia sempre que nasceu na Sibéria, mas se considerava brasileira e londrinense. Era a coisa mais bonita. Ela gostava muito de ir na Usina Três Bocas, onde os pais fixaram residência”, contou Maria do Carmo.

Além de conversar por muitos anos com os filhos apenas no idioma russo, a dona de casa Brauko também fazia questão de celebrar a Páscoa e o Natal da forma que aprendera com seus pais, na região de Novosibirski, na Sibéria. “Eles eram ortodoxos e uma característica é dar sequência, manter vivos os costumes”, apontou a nora.

As diferenças básicas estão no calendário e na importância que é dada à Páscoa. Enquanto no Ocidente o Natal é a data mais importante, na Rússia o título de festividade religiosa mais popular e democrática fica com a Páscoa. Os russos observam o calendário juliano ante o gregoriano, o que leva em conta um costume introduzido pela Igreja no Século IV, quando a festa que marca o nascimento de Jesus passou a ser comemorada no domingo seguinte à primeira lua cheia depois do equinócio de primavera, em 21 de março. Mesmo diante de certa complexidade em entender o costume, é possível afirmar que russos e ocidentais acabam comemorando a data ao mesmo tempo, vez ou outra, em razão de coincidências na data da primeira lua cheia.

Segundo Maria do Carmo Brauko, a matriarca da família também não poupava a voz quando convidada a contar as histórias da própria família. Era incansável em detalhar as viagens em carroças, trens, navios e ônibus, necessárias até o desembarque em Londrina, no dia 28 de julho de 1935. “Até 2018, ela falava muito do que viveu e adorava contar tudo”, disse.

Um destes ouvintes foi o jornalista Délio César, falecido em 2015. Há quase 20 anos, César publicou no site da Sercomtel uma reportagem sobre Maria Brauko. A “odisseia” começa com a convocação do pai e do avô de Maria Brauko para defenderem o regime czarista na revolução comunista, em 1917. Após a queda do czar e do início de uma séria de mudanças advindas da reforma agrária, que resultou na tomada de bens e em perseguições, a família decidiu deixar o país.

Se consideradas as motivações para abandonar a Rússia, a história de Maria Brauko se aproxima com a da polêmica filosofa russa Ayn Rand (1905-1982), autora de "A Revolta de Atlas" e a "Virtude do Egoísmo", e cujos ideais voltaram a ser propagados por conservadores e liberais. "Ela odiava a esquerda", anotou a nora ao ser questionada sobre a personalidade da sogra.

O primeiro destino foi o vizinho Afeganistão. "O pai foi na frente para arrumar trabalho, deixando uma ordem expressa: vender tudo o que der, juntar o dinheiro e cair na estrada, no mesmo rumo, para se encontrarem no trajeto", anotou Délio César. Brauko tinha dez anos e sua irmã mais nova, apenas onze meses. As duas meninas e os outros três irmãos também foram levados de carroça por sua mãe, porém também tiveram que encarar longos trechos a pé. Conta a história que, para acessar o Afeganistão, a família precisou despistar três contrabandistas após uma perseguição.

Imagem ilustrativa da imagem Pioneira de Londrina, Maria Brauko morre aos 101 anos
| Foto: Acervo Pessoal

Após 68 dias de viagem em território afegão o grupo acabou sendo liberado em um campo deserto até se deparar com uma nova encruzilhada. Dali, a família poderia decidir entre retornar à Russia, permanecer no Afeganistão ou migrar à rumo à China ou à Índia. O destino foi o país banhado pelo Rio Ganges.

"Entraram na Índia esfarrapados, com vários dias sem alimentar, rostos trincados e feridos pelo frio", anotou o jornalista, que também relatou um quase encontro da personagem com Mahatma Ghandi em Bangalore.

Foi através da Liga das Nações, precursora da ONU (Organização das Nações Unidas), que surgiu o convite para mudarem-se para o Brasil, após três meses na Índia. "Quem chamava eram os ingleses, donos da Companhia de Terras Norte do Paraná, com Mr. [Arthur] Thomas abrindo oportunidades para refugiados agricultores", explicou o jornalista Délio César. Depois de desembarcarem no Porto de Santos, a família seguiu de ônibus para São Paulo e chegou em Londrina no primeiro trem que a cidade recebeu, em clima de festa.

Maria Brauko contou ao jornalista que teve a oportunidade de voltar a Moscou, em uma visita que seria custeada pelos filhos. Porém, a dona de casa não quis saber de voltar ao país natal. "Eu sou brasileira e amo Londrina como se tivesse nascido aqui. Não há lugar mais bonito. Fui ao Rio, São Paulo e outros lugares, mas não acho graça nenhuma. [...] Se tivesse oportunidade de nascer outra vez, queria nascer aqui. Quando chegamos era uma cidade bem pequenina, mas eu me identifiquei como se fosse filha desta terra. Aquele começo em que a gente morava na Vila Brasil era a coisa mais linda. Não tinha nada de perigo. A gente saia na hora que queria, ia onde queria, podia deixar a casa aberta, não tinha perigo nenhum”, contou ao jornalista.