Percival de Souza
PUBLICAÇÃO
sábado, 24 de fevereiro de 2001
Recordações dos enterrados vivos podem ser sinistras. As sincronizadas rebeliões nos estabelecimentos penais de São Paulo deixaram claro, uma vez mais, quem manda dentro da cadeia, como se esse tal de PCC Primeiro Comando da Capital fosse uma verdadeira ONG, organização não-governamental, e os agentes do Estado responsáveis pela administração penitenciária não passassem de subordinados hierárquicos. De fato, a blitzkrieg guerra relâmpago, em alemão alastrou-se como se planejada com cronômetro. O governo tomou consciência do que estava acontecendo pelo programa do Gugu na tarde dominical. Desmoralizado, pediu audiência, literalmente, à liderança dos rebeldes. Se Mário Covas não estivesse com a saúde debilitada, os responsáveis pela inércia perigosíssima já teriam sido punidos.
Prisão, como devemos relembrar, é o lugar onde são colocados seres humanos que infringiram normas de convivência social e, por isso, são segregados para purgarem suas faltas (criminais). Da penitência na Igreja medieval surgiu a penitenciária. Portanto, espera-se que, isolado, o condenado se transforme e, regenerado, readquira então as condições de retornar ao convívio (sacrossanto?) da sociedade. Para isso, e somente para isso, existe a prisão. Óbvio que para cumprir esse papel a prisão deve possuir estrutura adequada, pessoal qualificado para mostrar o que se entende por bem e bom, contraponto de mal e mau.
Definidos os objetos teóricos, vejamos quem vai para a prisão. Rico, só em dia de visita, com exceções do tipo Lalau, que por sinal não se solidarizou com os companheiros de cárcere. A massa, sempre moldável e mutante, tem ladrões, matadores e traficantes em sua grande e imensa maioria. Os demais apreciadores do cardápio penal, sequestradores e latrocidas à parte, são considerados laranjas, isto é, pessoas que cometeram deslizes considerados menores e, por isso, humilhados no cotidiano da lei do cão, a implacável legislação interna que permite constrangimentos, violências sexuais, agressões e mortes. Em resumo: predomina sempre a lei do mais forte. Inertes, os agentes do Estado assistem a essa realidade passivamente. Para a maioria, a prisão é um inferno, o lugar onde ficam enterrados vivos, o cemitério das poesias. Para uma minoria, uma casa-mãe, onde se sentem à vontade.
Incompetente, o Estado não proporciona sequer a classificação criminal, a separação entre uns e outros. Os defensores dos direitos humanos, com as exceções de praxe, preferem os holofotes das grandes rebeliões e desaparecem do cotidiano prisional, que é o que interessa porque evitaria inclusive os motins. Nesse quadro dantesco, deu no que deu em São Paulo. O governo poderia ter agido, se quisesse, não fôra o detalhe de ter uma incompetente gerência para tais assuntos. Embora tudo fosse crônica anunciada, preferiu negar a existência de organizações criminosas dominantes e pregar a quadratura do círculo. Os fatos demonstraram que não era ficção.
Resumo da ópera bufa: nas prisões, o Executivo é um Poder que pouco pode, o Estado paralelo transformou-se no poder real. A bagunça aterrorizante, implacável e violenta, nada respeita. Nem familiares nem crianças por sinal, havia mais de mil delas na Casa de Detenção, no último domingo. Viram cadáveres e um homem ser esfaqueado até a morte e ter a cabeça cortada. Terão traumas pelo resto da vida. Ou não? Diante disso tudo, só me resta convidar as autoridades competentes e incompetentes a lançaram seus olhos míopes sobre o Paraná e observar os resultados que estão sendo colhidos através da experiência de privatizar um presídio. Quem não tem competência, dizem os sábios comerciantes, não deve se estabelecer. É possível que gente de fora saiba fazer aquilo que os de dentro têm obrigação, mas não sabem fazer.
