O poderoso chefão
Tommaso Buscetta, o Don Masino, ex-capo da Cosa Nostra, morreu há uma semana, em Nova York, onde vivia com identidade falsa e protegido pelo FBI, a polícia federal norte-americana, longe da Itália onde suas denúncias alcançaram um efeito devastador na sinistra organização criminosa.
Pessoalmente, a morte de Buscetta me frustra porque sabia através de Pino Arlachi, que investigou o crime organizado na Itália e tornou-se vice-secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que o mafioso, um personagem tão real que parecia uma obra de ficção de Mário Puzzo, autor de O Poderoso Chefão, estava com câncer e a certeza da morte inevitável poderia propiciar um depoimento-confissão estarrecedor. O próprio Arlachi transformou-se numa espécie de confessor momentâneo de Buscetta, a ponto de transformar o teor de uma longa conversa num pequeno livro, Adeus Cosa Nostra, no qual ele procura justificar-se, eticamente, sobre suas revelações que abalaram os alicerces mafiosos.
Mas questões relacionadas a normas de segurança – Buscetta temia ser morto a qualquer momento, independentemente do câncer – inviabilizaram o encontro. Lamento, e explico por quê: a) o interesse em torno dele não se restringe à Itália e tem muito no Brasil – onde ele foi preso duas vezes: nos anos 70, em Santa Catarina, e nos anos 80, em São Paulo; b) ele investiu em muitos negócios em nosso país, casou-se com uma brasileira e tinha muito relacionamento em várias partes podres do Brasil.
A morte de Buscetta aconteceu no momento em que estou chegando ao final da redação de um livro sobre a vida do delegado Sérgio Fleury, que prendeu Buscetta na praia de Itapema em 1972. Lá, entre outras coisas, havia um saco de dólares – uma fortuna da qual o delegado usou pequena parte para reformar, por conta própria, o segundo andar inteiro do DOPS, onde ficava a Divisão de Ordem Social, da qual era titular. É por essas e outras que Buscetta também é assunto que nos interessa, é coisa nossa. Sua última entrevista acabou sendo para o jornal La Repubblica, de Roma, quando declarou ao jornalista Saverio Lodato: ‘‘Errei na previsão que fiz junto com o juiz Giovanni Falcone; que erro colossal cometemos quando não percebemos que a Máfia hoje desempenha um papel muito maior do que tinha no passado. Porque a Máfia se tornou um fato político’’.
Falcone foi assassinado num atentado promovido pela Máfia, que explodiu duas toneladas de dinamite num trecho onde o magistrado passado com seu carro, na estrada Capacci-Palermo. Singular, este juiz: conheci-o quando esteve em São Paulo, onde aconteceu a segunda prisão de Buscetta. Singular porque o sistema judiciário italiano permite ao magistrado conduzir a fase de instrução. Ele foi arguto, psicólogo, decidido: perceber que surgira um momento certo para convencer Buscetta a falar quando a Máfia matou todos os seus parentes, até terceiro grau, num total de 14 homicídios. Essa matança rompia regras éticas dos próprios criminosos. Falcone soube usar esse momento de fragilidade psicológica e agir em nome da Justiça – não a justiça fria, distante, olímpica, burocrática, mas a justiça palpitante, próxima, junto aos desenrolar dos fatos, ágil e dinâmica.
Falcone criou o maxiprocesso, ou seja, passou a cruzar informações de um com outro, forneceu as garantias necessárias (o FBI protege Buscetta e o mafioso arrependido viva com identidade falsa e uma mesada de R$ 5 mil). Percebendo a importância da prisão de Buscetta no Brasil, viajou para São Paulo, entrevistou-se com ele, viu o inquérito na Polícia Federal, examinou os processos na Justiça Federal. O juiz italiano trouxe peritos contábeis para examinar a papelada de Buscetta e seu grupo. Atingiu em cheio o alvo que perseguia. Mas a Máfia matou-o.
A lição final de Buscetta, que eu pretendia aprofundar mas não consegui, gira em torno da que acabou sendo sua última declaração: a máfia se transformou num fato político. É só a gente parar um pouco e pensar sobre o que está acontecendo no Brasil, para verificarmos o quanto essa afirmação é verdadeira. Podridões, impunidades, conchavos, maracutaias, farsantes, fariseus e filisteus contemporâneos, falsos profetas, corrupção, violência, cara-de-pau... máfias e máfias, fatos e fatos políticos. Precisamos de sinceramente arrependidos e juízes como Giovanni Falcone.