Esquerda, direita
Os velhos chavões esquerda/direita emergiram outra vez ao longo da semana com o deputado federal Jair Bolsonaro (PPB-RJ) chamando José Genoino (PT-SP) de ‘‘delator’’ no episódio da guerrilha do Araguaia. A metralha verbal, por parte de Bolsonaro, capitão de reserva do Exército, atingiu também o ministro José Carlos Dias, acusado da tribuna da Câmara de ter sido ‘‘defensor de quadrilheiros’’ pelo fato de ter sido patrono de prisioneiros políticos durante os opacos anos de chumbo do arbítrio militar.
Manifestações dessa natureza já nos cansaram porque partem de pessoas que insistem em ver conteúdo de Marx ou Tomás de Aquino naquilo que se diz. Essa guerra ideológica, contudo, ainda vai dar pano para manga.
Aprendi, durante a garimpagem para escrever um livro sobre o Cabo Anselmo, o marinheiro rebelde de 1964 que foi um dos detonadores do golpe militar, segundo o general Mourão Filho (que deslocou tropas mineiras para o Rio, então Distrito Federal, para derrubar Jango Goulart), que nos episódios da história brasileira contemporânea aconteceu uma inversão de tradicional conceito. Ou seja: consta que a História sempre é contada por quem ganha. Na nossa, porém, os relatos são de quem perdeu. Assim, quando detalhei que o ex-presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais foi a seguir um agente duplo, servindo a repressão política para delatar ex-companheiros de luta armada, foi um deus-nos-acuda. Principalmente porque o relato mostrou fragilidades, vulnerabilidades, infantilidades. Quando se abre a Caixa de Pandora, as coisas surpreendem. Porque os vencedores se calaram.
No momento, cabe aos jornalistas resgatar fragmentos dessa História e montar o mosaico. Sem bandeirolas a priori, sem teses sobre o que não se investigou (defeito crônico nos cursos de pós-graduação da nossa Universidade) e uma busca incansável de fatos, independentemente das interpretações. Estou seguindo esse estilo ao começar redigir um livro sobre o cacique da repressão Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS paulista. Jornalismo investigativo hoje precisa produzir livros.
Há segredos guardados em vários porões. Bobagem, por isso, o ministro José Carlos Dias, da Justiça, falar em abrir os ‘‘arquivos secretos’’ da Polícia Federal e do seu Ministério para desvendar esses segredos. Secretário da Justiça no governo Franco Montoro, em São Paulo, o mesmo Dias anunciou essas bravatas em relação ao DOPS e o que aconteceu? Os arquivos foram todos para a Polícia Federal, onde assumiu a superintendência o delegado Romeu Tuma, que ele pretendia ‘‘congelar’’ no Governo. Por que digo que é bobagem? Porque o que interessa, como por exemplo a história de Anselmo, não está escrita em arquivo nenhum, não consta de ficha nenhuma. Aliás, por causa do blá-blá-blá de Dias, até fichas sumiram e – incrível coincidência – no mesmo dia e hora da posse de Tuma começava um incêndio no quinto andar do DOPS.
É preciso ter um mínimo de habilidade para transitar nesse terreno movediço. Não se sabe, ainda, metade do que aconteceu no Araguaia; metade do que aconteceu no DOPS de cada Estado; não se sabe nem um terço da máquina montada em cada DOI-CODI. Para produzir literatura, estou procurando transitar entre esse estranho pessoal. Já percebi que de modo geral quem colocou a mão na massa, como se atingido por estranha maldição, viveu e vive problemas pessoais, funcionais, familiares e sociais dos mais graves. Existiram os delatores, os informantes (‘‘cachorros’’ na gíria dos militares de esquerda), do mesmo modo como os torturadores, os caçadores, os personagens dessa guerra suja.
As feridas não estão cicatrizadas. Precisamos compreender que os brasileiros em conflito (sim, foi uma luta cruel de irmão contra irmão), que a arma empunhada de outrora precisa ser substituída pelo uso de cérebro em prol da legítima cidadania. Deixemos os chavões. Tiremos lições do passado. Adotemos posturas inteligentes. Democráticas, sem purismo dogmático.