O Brasil conta com 3,5 milhões de crianças com deficiência de até 14 anos. Dados do Censo Escolar de 2010, no entanto, mostram que quase 30% dessa população estavam fora da escola. Joelson Dias, presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da OAB, considera ser preciso remover as barreiras físicas, ambientais e de comunicação que impedem ou restringem o exercício dos direitos pelas pessoas com deficiência em condições de igualdade com as demais. Mas esse seria o problema menor.

Patrícia Martins dos Santos Gonçalves com o enteado Gabriel que tem Síndrome de Down : convivência com outras crianças foi fundamental para seu desenvolvimento
Patrícia Martins dos Santos Gonçalves com o enteado Gabriel que tem Síndrome de Down : convivência com outras crianças foi fundamental para seu desenvolvimento | Foto: Gustavo Carneiro

“É ainda mais urgente a remoção das barreiras atitudinais, da discriminação e do capacitismo, de quem, no caso mais específico da educação, ainda não se deu conta de que com a alteridade, a diversidade e a pluralidade, todos ganham no ambiente escolar.” As barreiras atitudinais são comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições com as demais pessoas.

Segundo ele, deve-se cobrar mais das autoridades a adoção de medidas concretas para a efetivação do direito à educação sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, nos termos preconizados na própria Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas), ou seja, um sistema educacional inclusivo em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida.

A discussão sobre a inclusão veio à tona após o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmar que o grau de deficiência elevado de algumas crianças torna impossível a convivência em sala de aula. Entretanto, “o que ainda atrapalha na efetivação dos direitos é a postura das autoridades públicas, mais que a retórica preconceituosa, discriminatória, reforçando estigmas, a deliberada omissão na adoção de políticas públicas adequadas”, criticou Dias.

Ao acompanhar de perto a trajetória escolar do enteado Gabriel, 26, que tem Síndrome de Down, a educadora londrinense Patrícia Martins dos Santos Gonçalves, 42, compreendeu como a convivência com outras crianças é fundamental tanto para o desenvolvimento dos estudantes especiais quanto dos próprios colegas na educação regular. Os dois convivem há 21 anos com o preconceito e a ignorância de parte da população. Porém, essa realidade não a fez desistir de buscar as condições ideais para o desenvolvimento daquele que considera como filho.

"Acho importantíssimo. Quando ele entrou no regular, ele não conseguia se comunicar. Mas ele percebeu 'se eu não falar, ninguém vai me entender'. Foi tão no início que a escola não queria aceitar pois não tinham professores preparados. Aí existia uma professora, a Beth Silva, que tinha um apego maior e aceitou este desafio”, lembra.

Ainda em meados de 2002, conta Gonçalves, a professora Beth Silva decidiu entender qual era o impacto desta convivência em uma de suas pesquisas acadêmicas. “Todas as crianças tiveram uma evolução muito grande, foi a turma que mais se destacou na escola na aprendizagem e no comportamento. Eles entenderam que o outro tem valor. Foi uma coisa bem bacana”, comemora a professora, que se sentiu "incentivada" pela situação do enteado a buscar maior qualificação profissional para atuar na educação especial ao longo dos últimos 14 anos.

De acordo com Joelson Dias que, conforme os termos preconizados pela Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os Estados devem assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis de aprendizado ao longo da vida (artigo 24).

Com isso, a pessoa não pode ser excluída do sistema educacional geral (classes regulares) sob a alegação de deficiência, devendo ser asseguradas as adaptações razoáveis necessárias a cada caso, além das medidas de apoio individualizadas e efetivas de acordo com a meta de inclusão plena.

“Além disso, de acordo com o Comentário n° 4 do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a criação de uma educação especial, destinada exclusivamente às pessoas com deficiência e separada das outras pessoas, configura situação de segregação e discriminação. Assim, não se pode admitir em nenhuma hipótese, nem mesmo de forma excepcional, que a pessoa com deficiência tenha acesso apenas à escola especial.”

Dias acrescenta que isso esvaziaria de todo o sentido e razão de ser a educação inclusiva, não espelhando a pluralidade e a diversidade da sociedade. “Tampouco prepararia o indivíduo para a vida em comunidade, além de contrariar todas as obrigações assumidas pelo Brasil enquanto signatário de tratados internacionais e violar normas de força constitucional.”

Sobre tipos de deficiência em que a inclusão não seria possível, o especialista reforça que não se pode justificar a exclusão do indivíduo pelo tipo de impedimento que ele apresenta, já que é o Estado e a sociedade que devem se adequar para que haja superação das barreiras. “Neste caso específico, para se promover a inclusão na educação, as escolas e o poder público devem fornecer ambientes escolares acessíveis e acomodação razoável, por meio também de recursos de apoio, treinamento aos professores e campanhas abrangentes de conscientização para propagar uma cultura da diversidade.”

Graças a ter sido alfabetizado, conta a mãe, Gabriel é um dos responsáveis pela limpeza do Kebá (casulo do bicho-da-seda), em um das principais companhias do segmento de fiação de seda natural do País, sediada em Londrina. "Ele trabalha na Bratac há dois anos com carteira assinada. A maior alegria é o dia do pagamento. É ir lá no caixa, passar o cartão e comprar um lanche. Ele ama viajar também e sempre diz que quer viajar para o Nordeste", alegra-se.

'Não existem deficiências que impeçam inclusão'

O presidente da Federação Nacional das Apaes, José Turozi, entende que não existem tipos de deficiência que impeçam a inclusão, mas há condições sociais e funcionais que impedem a verdadeira atitude inclusiva. “Toda pessoa deve e pode estar incluída, no entanto, nem sempre os meios propiciam as condições necessárias para sua real inclusão.”

Turozi destaca, no entanto, que a inclusão escolar é um processo que deve acontecer de forma responsável, planejada, a fim de que o aluno não sofra prejuízo em seus estudos. “Todas as crianças e adolescentes com deficiência têm que estar na escola em nível de igualdade. Acontece que por conta da condição da deficiência, imposta por uma sociedade que não é acessível a todos, algumas pessoas necessitam de apoio especializado para conseguir se desenvolver em nível de igualdade. Muitas vezes as escolas em geral não ofertam esses apoios em quantidade e tempo necessários para o pleno desenvolvimento da pessoa.”

Turozi defende que casos específicos e raros em que a necessidade de apoio é múltipla, permanente e intensa e que não possa ser suprida no espaço escolar comum, o melhor é que a pessoa tenha à disposição uma escola especial. “A escola especial deve ter uma finalidade específica, de modo a ser um apoio especializado à educação da pessoa com deficiência durante um período específico da sua vida e a família tem o direito e liberdade de escolha do melhor lugar para seus filhos.”

Entretanto, "pesados investimentos" na educação e na formação de professores são urgentemente necessários, avaliou a educadora Patrícia Gonçalves. Para ela, boa parte dos profissionais está desmotivada nos últimos anos. "Precisa de uma ingestão de ânimo, com cursos, com palestras, coisas que acrescentem nas nossas vidas. O meu incentivo veio da minha própria casa, porque sou mãe e professora. Mas nem todos têm essa motivação. Acredito que o nosso país nos deixa muito a Deus dará", lamenta.

A diretora pedagógica da APS-Down (Associação de Pais e Amigos de Portadores de Síndrome de Down) de Londrina, Idalina Marques, defende que é necessário evoluir muito em relação à conscientização, com mais informações e esclarecimento a respeito da inclusão.

“O modelo ideal é que não vejamos as pessoas com deficiência e sim pessoas com diversidades. Somos diferentes, aprendemos com as diferenças e não com as igualdades”, destaca.

Ela destaca que a inclusão ainda é um processo. “Devemos acreditar sempre. Temos uma parceria com a Secretaria de Educação e, quando as famílias se envolvem, seguindo orientações e respeitando a rotina escolar, tudo transcorre normalmente. Os direitos e deveres são para todos. Acompanhamos a evolução dos alunos. Professores do ensino regular vêm para receber orientação e nós vamos às escolas para orientar, é uma parceria muito boa.”

Ela considera a declaração do ministro Milton Ribeiro “um retrocesso” para a Educação. “Não existe atrapalhar o outro, todos têm algo especial, um aprende com o outro. Cada indivíduo tem suas particularidades e somos iguais na diferença”, conclui.(V.S./L.C.)

Ministro lamenta falas ‘mal interpretadas’

Por meio de nota emitida pela assessoria de imprensa do Ministério da Educação, o ministro Milton Ribeiro lamentou o que considera as suas falas “mal interpretadas” que alunos com deficiência “atrapalham” o aprendizado de outros alunos, durante entrevista ao programa “Novo Sem Censura”, da TV Brasil, no último dia 9.

Milton Ribeiro, ministro da Educação: depois de afirmar que alunos com deficiência "atrapalham" outros alunos, ele disse que sua fala foi "mal interpretada"
Milton Ribeiro, ministro da Educação: depois de afirmar que alunos com deficiência "atrapalham" outros alunos, ele disse que sua fala foi "mal interpretada" | Foto: Isac Nóbrega/PR

“O Ministério da Educação reforça seu o compromisso na implementação de ações e políticas públicas voltadas à educação especial, a fim de promover o desenvolvimento educacional dos alunos com deficiência.”

Segundo dados do último Censo Escolar, de 2020, realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), o número de matrículas da educação especial chegou a 1,3 milhão em 2020, um aumento de 34,7% em relação a 2016.

“O maior número delas está no ensino fundamental, que concentra 69,6% das matrículas da educação especial. Quando avaliado o aumento no número de matrículas entre 2016 e 2020, percebe-se que as de educação profissional concomitante/subsequente são as que mais cresceram, um acréscimo de 114,1%.”

Dados levantados pelo MEC apontam que cerca de 12% desses alunos não são devidamente beneficiados nas escolas regulares e se encontram excluídos do direito ao pleno desenvolvimento. “O Ministério da Educação entende que esses estudantes são merecedores de atendimentos múltiplos e especializados, capazes de garantir com equidade seu desenvolvimento educacional.”

Para tanto, o Ministério da Educação destinou na gestão do ministro Milton Ribeiro mais de R$ 257 milhões para execução de ações voltadas ao ensino especial em todo o país, como formação de professores de educação básica da rede pública de ensino e a equipagem/abertura de novas salas de recursos multifuncionais para atendimento especializado, espaços educacionais equipados e coordenados pedagogicamente para oferta do AEE (Atendimento Educacional Especializado). Investimento esse realizado pela Semesp (Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação). (L.C.)