O FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) é responsável pela publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e também pelo Atlas da Violência, em parceria com outras entidades. Historicamente, a principal fonte de dados dessas pesquisas, por ter abrangência nacional, é o Datasus/SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), do ministério da Saúde. No entanto, desde a publicação do Atlas da Violência de 2020, as publicações vêm enfrentando uma piora na qualidade dos dados sobre mortes violentas no país, o que pode conduzir a análises distorcidas, na medida que pode indicar subnotificação de homicídios.

Pesquisadores que trabalham com essas informações têm percebido mudanças na forma como os dados são tratados.
Pesquisadores que trabalham com essas informações têm percebido mudanças na forma como os dados são tratados. | Foto: iStock

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 também vem alertando para a distorção do viés na inserção das informações. Pesquisadores que trabalham com essas informações têm percebido mudanças na forma como os dados são tratados. O material é elaborado por pesquisadores, cientistas sociais, gestores públicos, policiais federais, civis e militares, operadores da justiça e profissionais de entidades da sociedade civil.

A deterioração da qualidade dos dados contraria até o que a Enap (Escola Nacional de Administração Pública) preconiza. “Dados são importantes fontes de informação que possibilitam análises, estudos e até o desenvolvimento de políticas públicas baseadas em evidências que podem garantir um melhor acesso da população a seus direitos.” A frase consta no site da Enap, um órgão federal que visa desenvolver competências de servidores públicos para aumentar a capacidade de governo na gestão das políticas públicas.

O FBSP é uma organização não governamental, apartidária, e sem fins lucrativos, que se dedica a construir um ambiente de referência e cooperação técnica na área da segurança pública, com a missão de dar transparência às informações sobre violência e políticas de segurança e encontrar soluções baseadas em evidências.

Segundo o anuário, em 2021, o Brasil registrou 22,3 MVI (Mortes Violentas Intencionais) para cada grupo de 100 mil habitantes, redução de 6,5% em relação a 2020. No entanto, o próprio anuário afirma que é preciso cautela na identificação dos fatores e causas para esse fenômeno, já que muitas das tentativas de explicação simplista e/ou interessada são realizadas no afogadilho da proximidade das eleições.

A qualidade dos dados de inserção no SIM sobre mortes violentas deteriorou muito nos últimos anos, segundo o economista Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência.

“A gente nem procurou analisar muito a fundo a questão da violência nos estados com os dados mais recentes de mortes violentas, porque eu acho que a qualidade dessas informações piorou muito”, declarou Cerqueira. Ele ressalta que houve, de fato, redução de homicídios, mas não no volume apresentado pelos dados do SIM.

Cerqueira afirma que o crescimento das mortes violentas por causa indeterminada dificulta uma melhor compreensão da evolução da violência letal no Brasil.

Além disso, ele assegura que os homicídios não computados também podem afetar os resultados de outras variáveis, reduzindo o nível de confiança das análises sobre juventude, homens e mulheres, negros e não negros, pessoas indígenas e homicídios por armas de fogo.

“As informações eram razoáveis, no entanto, a partir de 2019 piorou muito. Uma coisa curiosa é que a base final costumava ser divulgada em maio de cada ano. Em 2019 e 2020 esses dados finais foram entregues antes, sem qualquer cuidado no tratamento dos números, dois meses antes do habitual. Nunca vi isso acontecer.”

Segundo ele, houve um desmonte das equipes que trabalhavam no Ministério da Saúde. “Antes, se os Estados enviassem dados ruins, com o trabalho qualificado do órgão federal era possível melhorar isso. Com o desmonte acredito que não há mais esse trabalho de acompanhamento do processo (follow up) e de supervisão dos dados.”

A primeira fonte do dado vem a partir da declaração de óbito, elaborada pelo médico legista. “É ele quem faz o laudo cadavérico e vai preencher a declaração de óbito. Quando não se sabe isso, o médico legista deixa em branco aquelas linhas e vai para o próximo campo.”

Cerqueira afirma que a orientação anterior era de que se algum estado enviasse uma base com muitas mortes indeterminadas, o Ministério da Saúde cobrava que as pastas estaduais pesquisassem o que havia ocorrido.

“Era feito um trabalho junto às secretarias estaduais para que o dado fosse melhorado. A secretaria buscava informações junto à polícia e, eventualmente, junto a familiares para saber o que aconteceu.”

Outro fator pode ter relação com o sucateamento da estrutura em que o dado é gerado. “Pode estar ocorrendo falta de treinamento, os servidores não estão aparelhados, os locais podem estar sem equipamentos ou pode haver falta de pessoal. Isso pode gerar a produção primária ruim de informações.”

Ele avalia que se houver compartilhamento de informação entre polícia, IML (Instituto Médico Legal) e secretarias de saúde, a tendência é que haja uma melhora, porque entre eles, as coisas costumam funcionar.

“Só que, às vezes, mesmo dentro do próprio estado, a informação não flui.” Ele espera que esse trabalho de informações qualificadas seja recuperado. “O Ministério da Saúde e o SUS são patrimônios nacionais.”

transparência

O professor Cezar Bueno de Lima, da Escola de Educação e Humanidades e membro pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) em Curitiba, afirma que a transparência é fundamental na coleta e divulgação de dados.

“Existem as instituições oficiais de Estado e não instituições de governo. Elas precisam funcionar de acordo com esse princípio da confiança da população nas instituições de pesquisa”, ressalta.

Lima acrescenta que a redução de homicídios no país, por exemplo, tem o componente da utilização de câmeras por policiais em São Paulo, mas também ocorre em função de um poder paralelo constituído por milícias e organizações criminosas.

Por isso, diz, se os dados não forem inseridos de forma clara, a análise pode ficar comprometida. “A partir do momento em que você não coloca a causa ou a causa é desconhecida, eu não teria como afirmar que houve redução de homicídios, a não ser sendo leviano na afirmação”, aponta.

“As consequências disso é que a população fica refém de uma verdade produzida por instituições que precisam e devem funcionar a partir de parâmetros que proporcionem autonomia em relação à ingerência política. Porque, do ponto de vista político, um aumento da taxa de homicídios possa trazer prejuízos políticos eleitorais para determinados partidos com coligações governamentais. O fato é que as instituições de Estado não devem se confundir com a política”, argumenta Lima.

redução da criminalidade

A Sesp (Secretaria de Estado da Segurança Pública) argumenta que a queda dos números de violência é real e argumenta que a redução dos índices de homicídio é resultado de uma “política estratégica de segurança pública que conta com tecnologia, inteligência, integração e grandes investimentos”.

De acordo com o secretário Wagner Mesquita, a intenção da pasta é “manter o Paraná em nível de excelência com patrulhamento nas ruas, análise de pontos de maior incidência criminal e investigações técnicas para, cada vez mais, trazer a sensação de segurança que a população paranaense espera e merece''.

Segundo a pasta, o resultado desse trabalho pode ser visto nas reduções dos índices de criminalidade. “A taxa de homicídios por 100 mil habitantes teve redução de 47,1% quando comparado 2009 (taxa de 34,6) com 2019 (taxa de 18,3). Em números absolutos, a queda foi de 1.603 homicídios (-43,3%): 3.698 ocorrências do crime em 2009 e 2.095 em 2019.”

Os dados de 2019 fornecidos pela pasta indicam que o Paraná chegou ao menor número de mortes violentas na década, com 1.931 registros, a primeira vez em que os crimes contra a vida ficaram abaixo do patamar de 2 mil casos. “Na comparação com 2012, a redução foi de 42%. Os últimos três anos apresentaram reduções expressivas no estudo da Secretaria de Segurança Pública.”

“A queda nos homicídios dolosos, quando há intenção de matar, foi o que mais impactou nas estatísticas de 2019. Foram 1.780 casos naquele ano, 9% a menos que no ano anterior (1.955) – 2018 tinha, até então, o menor resultado na década. Com relação a 2012 (3.135), a redução nos homicídios foi de 43%. Foram registrados também, em 2019, 99 latrocínios (roubos seguidos de morte) e 52 lesões seguidas de morte.”

O menor registro de latrocínios aconteceu no ano passado, com 39 ocorrências, 35% a menos que no anterior (foram 60 casos em 2020) e uma queda de 67% na comparação com os piores anos da década: em 2015 e 2016 foram registrados, em cada um, 117 casos de latrocínio no Paraná.

A Sesa (Secretaria de Estado da Saúde do Paraná) informou, por meio de nota, que o SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), sistema nacional oficial do Ministério da Saúde, é alimentado pelo gestor do sistema municipal.

De acordo com a Sesa, a análise da situação da mortalidade subsidia as políticas públicas de saúde. “Os óbitos notificados no SIM são investigados pelas equipes de vigilância epidemiológica dos municípios para qualificação das causas básicas de morte com revisão e consolidação das estatísticas reais pelos níveis estaduais e federal.”

SEM RESPOSTA

A reportagem procurou as assessorias do Ministério da Saúde, do Ministério da Justiça e da Secretaria Municipal de Saúde para comentar as informações, mas não obteve resposta.

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