Londrina era uma cidade de intensa e constante transformação urbana na década de 1950. No entanto, da busca desenfreada pelo dinheiro do café surgiram as desigualdades sociais, já que nem todos os trabalhadores obtiveram êxito financeiro com a cultura cafeeira. Nesse período, muitos órfãos estavam desassistidos e alguns idosos não tinham mais com quem ficar e estavam desamparados. Eram os quase esquecidos, parcela da população que dependia da solidariedade da população para sobreviver. É nesse contexto que duas instituições surgiram em 1958: o asilo São Vicente de Paulo, primeiro da cidade, e o Lar Santo Antônio, que surgiu como internato dessas crianças e posteriormente assumiu o papel de orfanato

O Asilo São Vicente de Paulo e o Lar Santo Antônio foram fundados em 1958
O Asilo São Vicente de Paulo e o Lar Santo Antônio foram fundados em 1958 | Foto: Gustavo Carneiro

Dois vicentinos foram fundamentais para que essas obras se consolidassem: Antônio Faria Netto e Florindo Fabian. As duas instituições foram frutos da SSVP (Sociedade de São Vicente de Paulo), e da Congregação das Missionárias de Santo Antônio Maria Claret, esta última fundada em Londrina por Dom Geraldo Fernandes e por Madre Leonia Milito, personagens que já foram retratados em inúmeras reportagens.

No entanto, embora Faria Netto e Fabian tivessem um papel preponderante na história da assistência social londrinense, ambos adotaram a política de não aceitar homenagens e mantinham um perfil discreto, optando pelas realizações em vez da publicidade.

Faria Netto

O proprietário da rádio Paiquerê 91,7, J.B. Faria, é filho de Antônio Faria Netto, e reporta que o seu pai jamais admitiria que fizessem uma reportagem sobre ele em vida, porque não era dado a receber homenagens. Faria Netto chegou a ter o nome aprovado tanto pela Câmara Municipal de Londrina quanto pela Assembleia Legislativa do Paraná para receber os títulos de Cidadão Honorário, mas nas duas oportunidades recusou a deferência.

Imagem ilustrativa da imagem Os beneméritos dos quase esquecidos de Londrina
| Foto: Arquivo Pessoal

Antônio Faria Netto nasceu em São Sebastião do Paraíso (MG) em 23 de agosto de 1910, e antes de vir para Londrina passou por São Paulo e Rio Grande do Sul. Chegou ao Norte do Paraná no dia 6 de junho de 1945. “Ele já era vicentino, e sempre foi católico praticante. Aqui ele entrou na conferência vicentina e começou esse trabalho. Em 1957, com a vinda de Dom Geraldo Fernandes a Londrina, houve um trabalho impressionante de atendimento às famílias pobres. Juntos fundaram 49 conferências vicentinas”, destaca J.B. Faria.

O empresário e radialista J.B. Faria relembra que seu pai, Faria Netto, recebia donativos da Cáritas em casa para distribuir para famílias carentes
O empresário e radialista J.B. Faria relembra que seu pai, Faria Netto, recebia donativos da Cáritas em casa para distribuir para famílias carentes | Foto: Vítor Ogawa - Grupo Folha

O empresário e radialista relembra que seu pai recebia donativos da Cáritas em sua casa. “No fundo da residência ele fez uma despensa só com produtos que recebia para para distribuir para as famílias. Era um trabalho maravilhoso, que não era apenas de doação, mas de recuperação das famílias, por meio da orientação cristã. Na hora que a família estivesse andando por pernas próprias, pegavam outras famílias para ajudar. Eles também arrumaram casas populares. Foi realmente uma coisa muito bonita.”

Faria Netto conheceu Florindo Fabian quando frequentava a Panificadora Cristal, da qual Fabian era proprietário na rua Guaporé. No livro “A Arte de Bem Viver”, de Domingos Pellegrini, há o registro de como se conheceram. Faria Netto tinha por hábito comprar muitos biscoitos de polvilho, que Fabian imaginava ser para consumo próprio, mas que na realidade era para distribuir para as famílias que ajudava como vicentino. Quando decidiram construir o asilo e o lar para as crianças, não havia dinheiro em caixa, mas foram incentivados por Dom Geraldo Fernandes a ter fé.

“O Florindo era um companheirão dele. Ele sempre foi um homem de construção e no asilo era o meu pai que buscava o dinheiro. Eu me lembro que eu já estava na rádio quando eles construíram a enfermaria do asilo”, relembrou J.B.

O bom relacionamento com personalidades da cidade e de fora ajudou a conseguir os recursos. Os primeiros doadores foram João Roveri Sobrinho; Raimundo Durães, corretor da Companhia de Terras Norte do Paraná, e João Milanez, fundador da da Folha de Londrina.

“Havia uma confiança grande nele. Orlando Mayrink Góes e a Viação Garcia ajudavam muito. Uma vez o asilo precisou fazer uma ligação de água e na época o valor da obra era 700 mil cruzeiros. Era muito dinheiro. Ele ligou para um genro do João Lunardelli, de Porecatu, e para outro amigo de São Paulo, que sempre ajudava, o Jayme Watt Longo (principal acionista da empresa que controla o grupo Vale do Ivaí S/A Açúcar e Álcool), e três dias depois o dinheiro estava na conta.”

A certa altura da vida, Faria Netto manifestou o desejo de parar de dirigir, mas na realidade aquilo foi um pretexto para doar seu Maverick para o asilo
A certa altura da vida, Faria Netto manifestou o desejo de parar de dirigir, mas na realidade aquilo foi um pretexto para doar seu Maverick para o asilo | Foto: Arquivo Pessoal

J.B. também se recorda que a certa altura da vida seu pai manifestou o desejo de parar de dirigir, mas na realidade aquilo foi um pretexto para ele doar o seu carro, um Maverick, para o asilo. “Ele tinha uma vocação por São Vicente que era o pai dos Pobres. Ele ajudou muito porque Dom Geraldo se apoiou muito nele. A própria Congregação Claretiana teve muita relação com ele. Ele não era o pai apenas dos três filhos. Ele foi pai dos irmãos e dos familiares. Eu não sei quantas casas ele arrumou para pessoas necessitadas. Foram centenas e ele vivia para isso”, declara.

Florindo Fabian

De acordo com o filho de Florindo, Ézaro Fabian, fundador da construtora Plaenge, seu pai era conhecido como Fabiano, nome com o qual foi registrado e assim permaneceu até 1985, quando a família alterou para o nome original para resgatar a cidadania italiana. Nascido em São Manuel (SP), Florindo se tornou vicentino em Bauru, quando tinha 19 anos. “Ele nasceu em 1913 e isso aconteceu em 1932. Eu perguntei por que ele se tornou vicentino e ele respondeu que gostava do trabalho dos vicentinos com os pobres, e achava importante trabalhar com os idosos”, revela Ézaro. “Ele dizia que as crianças sempre tinham mais apoio, mas os idosos, por estarem mais próximos da morte, ninguém tinha muita disponibilidade para ajudar.”

Ézaro Fabian, fundador da construtora Plaenge, sempre incentivou os vicentinos a trabalhar no apoio aos idosos
Ézaro Fabian, fundador da construtora Plaenge, sempre incentivou os vicentinos a trabalhar no apoio aos idosos | Foto: Divulgação/Plaenge

“Bauru é mais antiga que Londrina e o trabalho dos vicentinos por lá estava mais adiantado. Eu tinha 5 ou 6 anos e ele me levava junto para visitar o asilo de lá. Como era contador, ele fazia o movimento de caixa deles. Ainda em Bauru, ele mantinha cobertores corta febre estocados em casa, daqueles mais simples, para distribuir para os pobres.” Florindo também promovia ensinamentos de higiene e de saúde entre os assistidos.

Ézaro Fabian conta que a construção do Asilo São Vicente de Paulo foi feita etapas por conta da falta de dinheiro
Ézaro Fabian conta que a construção do Asilo São Vicente de Paulo foi feita etapas por conta da falta de dinheiro | Foto: Vítor Ogawa - Grupo Folha

Em Londrina, Faria Netto e Fabiano instituíram a arrecadação de donativos na porta dos cemitérios em datas especiais, como Finados, Dia das Mães e Dia dos Pais. Segundo Ézaro Fabian, seu pai replicou a ideia dessa arrecadação dos vicentinos de Bauru. “Meu pai falava que o presidente da organização era o seu Faria, e ele o tinha em muita alta conta. Ele via que era um santo homem.” Dom Geraldo Fernandes também chamava Faria de “vicentino número 1.”

Ézaro lembra que carregava produtos de gêneros alimentícios para ajudar o pai a fazer a distribuição. “Geralmente era domingo de manhã e normalmente ele visitava umas três ou quatro famílias.”

“Quando me formei engenheiro, vim para Londrina e ele estava construindo o asilo. A construção era por etapas, então, se tinha que concretar uma laje, tinha que juntar o dinheiro para isso. A construção praticamente parava até juntar mais dinheiro. Eles foram com a cara e a coragem", diz.

"Também me recordo dele me pedir para cobrar um engenheiro calculista que tinha doado o projeto a pedido do dom Geraldo. Meu pai falou que tinha dinheiro para fazer mais uma laje, mas que o engenheiro ainda não havia entregado o cálculo. Comecei a pressionar esse engenheiro, que ficou meio bravo comigo e disse que o trabalho era voluntário. Meu pai foi falar com o Dom Geraldo, que falou que o trabalho por caridade tem a obrigação de ser feito primeiro. Logo depois disso, os cálculos saíram.”

Primeiros idosos abrigados no Asilo São Vicente de Paulo
Primeiros idosos abrigados no Asilo São Vicente de Paulo | Foto: Arquivo/Asilo São Vicente de Paulo

No livro "A Arte de Bem Viver", Florindo Fabian relata um diálogo que teve com Dom Geraldo Fernandes. "Um dia, quando foi visitar a obra, que estava com dois quartos em acabamento, eu disse que aqueles no futuro talvez fossem os nossos, e daí, sempre que ia lá, ele dizia: 'Florindo, capricha em todos os quartos, que só Deus Sabe quais serão os nossos..." “Eu sinto orgulho de ter ele como pai. Tudo o que eu sou, foi graças a ele”, declara Ézaro Fabian.

Irmãs Claretianas

A irmã Aparecida de Lurdes Arado, da Congregação das Missionárias de Santo Antônio Maria Claret, chegou a Londrina em 1961. O Lar Santo Antônio e o Asilo São Vicente já existiam no complexo que possui 3.200 metros quadrados. “O lar já existia, mas o asilo funcionava nas casinhas da Vila Vicentina, onde hoje fica o Memorial Madre Leonia Milito. A Madre Leonia chegou a morar em uma dessas casas”, relembra.

Irmã Aparecida Arado relembra que as famílias que viviam na vila eram pobres e faziam do local uma moradia provisória até conquistar um emprego e conseguir pagar aluguel
Irmã Aparecida Arado relembra que as famílias que viviam na vila eram pobres e faziam do local uma moradia provisória até conquistar um emprego e conseguir pagar aluguel | Foto: Gustavo Carneiro

Segundo ela, tanto Antônio Faria Netto como Florindo Fabian eram líderes atuantes e influentes. “Eu conheci mais o senhor Antônio Faria Netto, e o Florindo Fabian conheci pelo senhor Faria. Conheci ele como senhor Fabiano, que participava das reuniões e sempre nos deu apoio.”

Irmã Aparecida relembra que as famílias que viviam na vila eram pobres e faziam do local uma moradia provisória até conquistar um emprego e conseguir pagar aluguel. “Essas famílias ficavam por tempo indeterminado. Tinha seis casinhas nesse local.” Foi Dom Geraldo Fernandes que pediu que o complexo abrigasse crianças necessitadas.

As crianças que não tinham família foram acolhidas nessa época por Madre Leonia. "A gente tinha todo o apoio e incentivo do senhor Antônio Faria. Era um grupo muito participativo que trabalhava com as irmãs claretianas. Era um trabalho conjunto, porque a propriedade é dos vicentinos até hoje, mas as irmãs sempre trabalharam administrando, coordenando, organizando e acolhendo todas essas pessoas”, destaca.

Quase 80 órfãs foram acolhidas no Lar Santo Antônio. “Teve alguns meninos também”, destaca. O local funcionou como orfanato até o início dos anos 1990 e, posteriormente, tornou-se centro de educação infantil e funciona até hoje como CEI Santo Antônio.

As irmãs também lutaram fazendo rifas e campanhas, pedindo doações. “As irmãs saíam com os vicentinos para a rua para pedir dinheiro para construir esse asilo que existe até hoje. Em um segundo momento foi feita a segunda ala, que é aquela onde hoje funciona uma enfermaria e onde ficam os idosos que são mais independentes e ainda conseguem andar. No outro prédio fica o lar dos idosos mais dependentes, mas a estrutura hoje é muito maior do que a daquele tempo”, aponta a irmã.

O Lar Santo Antônio passou a ser creche porque o contexto social mudou. “Quando foi criado, o panorama era outro. Não tinha conselho tutelar e creches quase não existiam. Quando começaram a aparecer as creches percebemos que as crianças sentiam muita falta das famílias que não vinham visitar. Muitas crianças não sabiam quem era o pai e nem a mãe. As meninas tinham madrinhas na cidade, que passavam o fim de semana com essas crianças. Muitas foram adotadas pelos padrinhos e madrinhas. Os outros a gente tentou descobrir alguém da família que pudesse assumi-las”, expôs. O CEI Santo Antônio atende hoje cerca de 120 meninos e meninas entre dois e quatro anos.

A Irmã Neusa Aparecida da Silva, coordenadora-geral do Asilo São Vicente de Paulo, explica que hoje o local abriga aproximadamente 100 idosos de 60 e 100 anos. “Eu sou a coordenadora há quatro anos. O asilo foi pensado e sonhado por Dom Geraldo Fernades, que foi o nosso fundador, pela Madre Leonia Milito e pelo senhor Antônio Faria Netto. Eles foram os protagonistas desde 1958, quando começaram tudo”, destaca.

O termo oficial de abertura foi assinado pelas madres Tarcísia Gravina e Celestina Maiorano e pelas Irmãs Clorinda Gerardi e Teresa Mendes. “Nos anos 1960 essas casas da Vila Vicentina foram removidas e as pessoas foram para casas populares ou para as famílias. Cinco casas foram escolhidas para abrigar os idosos e as casas da vila onde eram atendidos os idosos foram reformadas e transformadas em um único bloco, que foi transformado no Asilo São Vicente de Paulo.”

A ala foi projetada para 120 idosos, mas as vagas não foram preenchidas totalmente. “Em 1972 foi construída a segunda ala pela mesma equipe capitaneada pelo senhor Faria Netto. Foi feita a inauguração em dezembro de 1996. Nessa ala há 80 leitos e estamos hoje com quase 80 idosos neles.”

Irmã Neusa ressalta que os vicentinos permanecem como donos do terreno, no entanto, o asilo sempre foi administrado pelas irmãs claretianas. “Começou com a Madre Leonia, mas as irmãs claretianas sempre estiveram à frente da instituição.”

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