Em alguns centros de coleta, as doações de sangue chegaram a cair 30% no ano passado
Em alguns centros de coleta, as doações de sangue chegaram a cair 30% no ano passado | Foto: iStock

A pressão da variante ômicron do coronavírus no sistema de saúde também é sentida nos bancos de sangue que encerram janeiro em estado de alerta. Em algumas unidades do Hemepar (Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná), como a de Curitiba, houve uma queda de 30% nas doações, em relação aos anos anteriores. Na última quinta-feira, o centro de coleta na capital paranaense contava com um estoque de pouco mais de 5,4 mil bolsas dos vários tipos de sangue, saldo que era suficiente para cinco dias, no máximo.

No Hemocentro Regional de Londrina, órgão vinculado ao Hospital Universitário (HU) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e que também integra a hemorrede pública do Paraná, a queda nas doações chega a 15%, taxa que se manteve constante em todos os meses da pandemia. Uma situação que tende a piorar com o aumento considerável dos casos de contágio que têm provocado o afastamento dos servidores e a volta da realização dos procedimentos eletivos.

De acordo com Liana Labres de Souza, diretora do Hemepar, a falta de doadores não é algo exclusivo do Paraná. “Essa tendência de queda nas doações de sangue é sentida em todo o Brasil. Temos contornado a situação com um remanejamento de estoques entre as unidades, trabalhando com um grupo para a comunicação entre os responsáveis pelos estoques e que atualizam, constantemente, os quantitativos e os excedentes. Uma logística de transporte faz com que esses hemocomponentes não faltem nas unidades, para que nenhum paranaense seja prejudicado”, afirma.

Esse foi o segundo janeiro de pandemia para os hemocentros e se no ano passado a falta de doadores poderia ser justificada pelo medo instalado e o isolamento, em 2022 o desafio é administrar a falta dos servidores responsáveis pelas coletas que também acabaram se contaminando. “No ano passado, com avançar da vacinação, as doações também começaram a crescer. Hoje, temos parte da equipe afastada, servidores da coleta e da triagem e isso nos obrigou a reduzir os atendimentos. São dois janeiros diferentes e a ômicron nos mostra uma outra face da pandemia, onde estamos com mais equipes de saúde afastadas. Isso cria alguma dificuldade nos nossos processos de trabalho”, revela.

Hoje, doze servidores estão afastados do trabalho por conta da covid na unidade de Curitiba, de uma equipe formada por 170 profissionais. A expectativa é voltar a manter os números de doações como aqueles registradas em dezembro, antes da nova cepa do vírus ganhar força, quando em toda a hemorrede pública paranaense recebeu mais de 15 mil doações. Antes da pandemia, em 2018, as doações médias mensais ultrapassavam as 14,5 mil, em todo o Estado; em 2019 isso caiu para 13 mil e no ano passado ficou uma média mensal de cerca 12 mil doações . “Esse superávit de dezembro foi por conta do aumento da confiança na população, saindo mais, vacinada e o efeito das festas de fim de ano. Infelizmente, durou pouco”, comenta Liana Labres.

AGENDAMENTO ON-LINE

A estratégia para manter os doadores e atrair mais pessoas dispostas ao ato de doar sangue envolve a manutenção dos agendamentos online e campanhas de conscientização e informação. “A pandemia trouxe pelo menos uma coisa positiva: com os agendamentos online, o tempo de permanência do doador dentro da unidade caiu de 120 minutos para uma média de 57 min; em alguns casos de até 45 minutos. Isso, para o doador, é uma otimização importante do tempo. Na pesquisa de satisfação, a pontuação para a manutenção dos agendamentos foi alta. Agora, estamos presentes nas redes sociais, sempre orientando os doadores para doarem por tipo sanguíneo, de acordo com o nosso estoque, para que venham aqueles com o tipo sanguíneo do qual temos mais necessidade. Dessa forma, otimizando ainda mais os processos, os doadores são atendidos com mais agilidade. Um esforço para fazer com que a população entenda a importância desse gesto uma vez que não existe um substituto para o sangue humano”, afirma.

Hemocentro do HU está em estado de alerta

O Hemocentro do HU, em Londrina, é o segundo mais importante em volume de doações de sangue de toda a rede Hemepar. É referência no atendimento a pacientes portadores de coagulopatias hereditárias. Atende as demandas transfusionais da rede pública de Londrina e dá suporte às unidades de coleta e transfusão de Cornélio Procópio e Jacarezinho; ainda distribui sangue para mais de vinte unidades hospitalares da 17ª Regional de Saúde.

A unidade enfrenta uma situação bem parecida com a de Curitiba, com estoques reduzidos, servidores afastados, contaminados pela nova cepa do e doadores em fuga. De acordo com Fausto Trigo, coordenador do Hemocentro do HU, tudo parecia melhorar em outubro e novembro, mas foi chegar a ômicron para colocar todo o sistema em alerta, mais uma vez.

“Já a retomada dos procedimentos médicos que precisam de sangue fez a pressão na rede subir, uma pressão positiva, era um avanço. Na metade de dezembro, os casos de Coronavírus por conta da ômicron começaram a aumentar e isso espantou os doadores. Primeiro, aumentaram os casos clínicos e mais sintomáticos que impedem a doação. Depois, novamente o medo de contágio e um terceiro fator, que para nós também foi determinante, foi o Natal e Ano Novo caírem em um sábado, historicamente o nosso melhor dia de coletas. Começamos janeiro com estoques realmente reduzidos”, diz.

Desde a segunda quinzena de dezembro que o Hemocentro do HU está em estado de alerta, com uma situação crítica para certos componentes negativos, entre eles plaquetas e glóbulos vermelhos, o sangue em si , com RH negativo, tanto para o tipo A quanto para o tipo O. “Estamos em um período de falta exacerbada para esses três subtipos, com níveis críticos. No caso das plaquetas, é muito preocupante porque esse material tem um prazo biológico de validade de cinco dias a partir da coleta. Se até o sexto dia não temos uma nova coleta, ficamos sem plaqueta nenhuma no estoque”, explica.

“As plaquetas são componentes muito utilizados para pacientes que tratam câncer e por uma infeliz coincidência, esse tem sido um período com uma elevação de casos hematológicos de câncer, em especial leucemia aguda, que consome muito sangue e plaquetas”, comenta.

"MUITO DIFÍCIL"

Para Trigo, todos os aspectos levam ao aumento da pressão em todo o sistema de saúde que já vinha desmontando a estrutura colocada em pé para enfrentar a emergência sanitária. “Estamos assistindo a uma retomada absurda do número de casos por conta de uma variante que é muito contagiosa. A nossa condição hoje é muito parecida com aquela de janeiro do ano passado, mas sinceramente, esperava que esse janeiro fosse mais leve que o do ano passado. Essa conjunção de fatores não está contribuindo, está muito difícil”, desabafa.

Há oito anos à frente do Hemocentro do HU, Trigo diz que pela primeira vez, precisou abandonar a política de informação e conscientização da importância da doação de sangue e detrimento aos apelos diante de uma situação que ele mesmo considera desesperadora. “Tudo está conectado, é uma grande máquina e se uma engrenagem quebra, o restante não roda. Por conta do aumento do número de casos a pressão no hospital é maior, o numero de doações cai, é tudo interligado. O atendimento de casos eletivos cria uma demanda adicional ao sistema de hemoterapia, ao laboratório e aos vários outros setores. Está tudo interligado. Não gostamos de levar o tom alarmista, sempre associando a doação de sangue a algum ruim, um fato catastrófico, à morte. A doação é uma boa coisa, é positiva, é um ato de cidadania. Muitos desconhecem o valor biológico do sangue, o poder que cada um tem, nas próprias veias e artérias, de mudar a condição clínica de um paciente grave num hospital. É um exercício de altruísmo que faz bem”, diz.

A doação é fundamental, continua Trigo: “o sangue é um material biológico que não se conseguiu produzir em fabricas, apesar das tentativas nos últimos 60 anos. Cada bolsa de sangue doada será destinada a até três pessoas diferentes, vai permitir que tratamentos médicos sejam realizados, é uma perspectiva de tratamento para os doentes. Como estamos na hemorrede pública, a solidariedade do londrinense doador de sangue vai para o Estado inteiro. O material pode ser utilizado em qualquer leito SUS do Paraná uma vez que o nosso estoque esteja em ordem”, completa.

As doações ao Hemocentro do HU em 2020 e 2021 registraram números similares o que mudou foi o consumo de hemocomponentes – os concentrados de glóbulos vermelhos, de plaquetas e de plasma – que foi 6% maior no segundo semestre de 2021 em comparação ao mesmo período do ano anterior. A média no biênio 20/21 foi de 1,1 mil doações mensais, uma queda de 15% em relação às medias mensais registradas antes da pandemia.

O HU também deve manter os agendamentos on-line que, na opinião do coordenador, criou uma nova rotina entre os doadores. “Quando a pandemia acabar, provavelmente vamos adotar sistema híbrido, com os agendamentos on-line e atendimento por demanda espontânea. Já sabemos que a aglomeração afasta o doador e foi fundamental adotar todas as medidas de segurança para o doador e para os servidores que fazem a coleta e triagem. Isso garantiu a sensação de segurança durante a pandemia. É seguro doar e essas regras serão mantidas. O cuidado não cessa”, revela. Ainda assim, o Hemocentro hoje conta com seis servidores afastados por causa da ômicron, de uma equipe de 54 pessoas.

Mesmo diante a situação complicada, é possível imaginar um cenário perfeito. “Gostaríamos de atingir 2 mil doações mensais e com isso, ampliar o atendimento do Hemocentro do HU a todos os leitos SUS da 17ª a Regional de Saúde. Para apenas manter o que já provisionamos hoje, os 22 hospitais e entre eles o HU, o Hospital do Câncer, o Zona Norte, Zona Sul e Maternidade Municipal, precisaríamos de 1.350 bolsas mensais”, comenta Trigo. Hoje, as doações mensais não ultrapassam as 1.250 bolsas que são repassadas em sua totalidade para os hospitais da região.