Existem marcos na paisagem londrinense que são tão antigos que ficam incorporados no cotidiano das pessoas, mas quando são removidos fisicamente deixam um vazio não só no local, mas na memória afetiva das pessoas. Um deles é o imóvel conhecido como Máquina de Arroz Londrina, que desde o dia 7 deste mês vem sendo demolido na rua Santa Catarina, esquina com a Uruguai. O imóvel de madeira talvez fosse um dos estabelecimentos comerciais mais antigos de Londrina que ainda estava de pé, da mesma década em que a cidade foi fundada, mas não resistiu ao tempo.

O arroz precisava passar pelo  beneficiamento, 
já que era difícil de remover a casca dos grãos manualmente
O arroz precisava passar pelo beneficiamento, já que era difícil de remover a casca dos grãos manualmente | Foto: Gustavo Carneiro

A razão social do estabelecimento que deu origem ao espaço era Irmãos Nishiyama e Cia. O imóvel foi edificado quando os irmãos Satoru Nishiyama e Massami Nishiyama e o cunhado deles, Takashi Kazahaya, criaram o estabelecimento para beneficiar o arroz que era cultivado por pequenos agricultores da cidade, que na época era somente para consumo próprio.

Diferentemente do milho e do feijão, que eram mais fáceis de limpar, o arroz era um produto que precisava ser beneficiado para o consumo, já que era difícil de remover a casca dos grãos manualmente.

O advogado Takeki Nishiyama, filho de Satoru, relata que sua família veio da província de Okayama, no Japão, no fim dos anos 1920 e foi parar em Cambará (Norte Pioneiro) naquela década, na Fazenda Água do Bugre. “Ele tinha um contrato de quatro anos para trabalhar como colono na Fazenda Água do Bugre. Quando o contrato encerrou, ele se estabeleceu na cidade de Cambará com outro colega imigrante. Eles tinham um armazém de madeira e começaram a trabalhar lá. O meu pai ficou com beneficiamento de arroz, e o amigo dele montou um alambique para fazer cachaça”, relata.

Em meados da década de 1930 eles se mudaram para Londrina para construir o imóvel que abrigaria a Máquina de Arroz Londrina. “Japonês gosta de arroz, então todo agricultor japonês sempre tinha plantação de arroz. Ele aproveitou esse embalo e começou a trabalhar com o beneficiamento”, destaca. Ele relembra que a maior parte da clientela era formada por brasileiros sem ascendência nipônica. “No início, esse beneficiamento não era para a comercialização do arroz. Naquela época os sitiantes traziam o arroz de carroça, de carrinho ou de bicicleta e deixavam o arroz na casca. A gente beneficiava o arroz e eles vinham buscar no outro dia, sempre para consumo próprio.”

BERÇO

“Eu não posso deixar isso aqui parado e só ficar 
pagando o IPTU. Eu não tinha outra alternativa”, lamenta Takeki
“Eu não posso deixar isso aqui parado e só ficar pagando o IPTU. Eu não tinha outra alternativa”, lamenta Takeki | Foto: Gustavo Carneiro

Takeki se emociona ao falar do imóvel, já que ele está ligado fortemente à sua vida. Foi ali que ele nasceu, assim como outros dois irmãos, em um tempo em que os partos eram realizados nas casas. Ele mostrou para a reportagem uma foto, protegida por uma cartolina e uma folha de papel de seda, com o imóvel edificado ainda em seus primeiros anos de existência.

Com dizeres em japonês anotados na cartolina é possível ler que a foto foi tirada na era Showa 13 do calendário japonês, ou seja, em 1938. “Essa é a única foto que tenho daqui e é original. Nela aparecem, além de meus pais, o meu irmão mais velho e minha irmã mais velha, que hoje já são falecidos.”

Ao ver o imóvel demolido, ele afirma que é dolorido ver aquele espaço destruído. “Eu fico falando com você e, ao mesmo tempo, fico pensando no que eu fazia aqui anos atrás. Dói mesmo. Nascemos aqui e é como se fosse o meu berço. Mas as coisas estão evoluindo e eu não tinha mais alternativa.”

Takeki relata a dificuldade de qualquer estabelecimento conseguir alvará para funcionar no espaço, já que a edificação em madeira era antiga e já não reunia condições de segurança para quem quisesse se estabelecer por lá, por isso não conseguia alugá-lo. “Eu não posso deixar isso aqui parado e só ficar pagando o IPTU. Eu não tinha outra alternativa”, lamenta.

O proprietário recebeu a proposta de seu inquilino Décio Carlos Rodrigues para que o local fosse demolido e uma outra edificação fosse levantada no local. A madeira da estrutura, constituída majoritariamente por perobas-rosa, foi comercializada pelo inquilino. Já a máquina de arroz remanescente foi oferecida ao Museu Histórico Padre Carlos Weiss, da Universidade Estadual de Londrina.

ROTINA DA MÁQUINA

Takeki relembra como seu pai avaliava a qualidade do arroz manualmente, antes de beneficiá-lo, e se admirava como ele descascava facilmente as amostras nas mãos. “Ele friccionava o arroz na casca e já sabia o preço e as condições que iria oferecer. Isso acontecia antes mesmo de o cliente entrar no estabelecimento. Mas as mãos dele ficavam com um calombo grosso, como uma pele de rinoceronte. Eu tentava friccionar o arroz nas mãos como ele, mas não conseguia.”

Ao percorrer pelas tábuas de peroba-rosa caídas da demolição, em meio a pregos enferrujados, ele ainda vislumbra cenas de sua infância. Na placa de identificação da empresa que produziu a máquina de beneficiamento de arroz que ainda estava no local durante a demolição, está a inscrição Máquina “Lucato”, dos Irmãos Lucato, de Limeira (SP). “Eu me recordo muito daqui, pois trabalhei muito nessa máquina. Tinha o arroz separado, que era como a gente chamava o grão inteiro, e havia o arroz bica corrida, que era o que mais vendia. O arroz bica corrida era uma mistura, porque só o arroz inteiro não vendia e só o arroz quebrado também não vendia. Então a gente fazia essa mistura. Nós rastelávamos o arroz separado e misturávamos com o arroz quebrado para fazer o arroz bica corrida. Também tinha a quirela e também o farelo, que era muito utilizado para fazer o tsukemono, o picles japonês”, destacou.

Segundo ele, o arroz beneficiado era pesado em uma balança com capacidade para 200 kg e depois devolvido aos agricultores. Só em uma época posterior é que teve início a comercialização do arroz. “Em alguns casos, havia proprietários de terras com extensões maiores que plantavam mais do que o necessário para o consumo próprio e vendiam uma parte do arroz que produziam. Meu pai comprava o arroz e revendia para os estabelecimentos que chamávamos de vendinhas. Só depois houve a fase de venda para o consumidor final, que surgiu conforme a cidade foi progredindo. Ele, que tinha apenas uma máquina de arroz, acabou montando outra no mesmo imóvel e, anos depois, montou outra máquina em Maringá, para seu outro cunhado."

Takeki ainda lembra do tempo em que saía do Grupo Escolar Hugo Simas e levava a marmita para seu pai. Na época a rua Uruguai se chamava Rio Grande do Sul e ainda havia muitas árvores nativas nas proximidades. "Era uma época em que a gente caçava passarinhos. Aqui perto tinha a Serraria Curotto", relembra.

MUDANÇA PARA SÃO PAULO

Satoro Nishiyama também foi responsável pela implantação do Cine Theatro Municipal, inaugurado em 1940, e também por veículos de aluguel. Sofreu perseguição no período pós-guerra e amargou prejuízo por conta da geada em meados da década de 1950 e isso acabou refletindo em um de seus investimentos, a construção do edifício Tókio com os pioneiros Haruo Ohara e Tomita.

“Nos mudamos para São Paulo quando eu tinha 14 anos. Meu pai montou uma fábrica de papel lá em Itaquera, em São Paulo. Depois vendeu aquela fábrica e adquiriu uma fábrica lá no Distrito de Sousas, em Campinas.” Da mesma forma que Antônio Augusto Caminhoto cuidou do Cine Theatro Municipal para Nishiyama, Takeki se recorda que a máquina de arroz teve um interventor, que era o senhor D'Andrea, da D'andrea Modas. "Ele e o José Bonifácio Silva, provedor da Santa Casa, intervieram para que os bens de meu pai não fossem confiscados. Meu pai viveu até 1994. Ainda bem que ele não está aqui para ver a demolição”, afirma Takeki.

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