O professor Alexsandro Eleoterio Pereira de Souza possui doutorado em Ciências Sociais e em Política Social e é especialista em psicanálise. Ele aponta que a pesquisa confirma algo que ele já havia identificado com o conceito de necropolítica. “Independentemente do status da classe na qual o sujeito negro ocupe, essa questão da necropolitica reflete o investimento do próprio estado e da sociedade como um todo em não respeitar os corpos negros. O próprio negro acaba incorporando essa realidade. Quando se diz que a mortalidade atinge até advogados negros, a gente precisa entender quem é esse advogado negro.” Souza explicou que o sujeito em questão é uma exceção e enquanto exceção recai sobre o sujeito a necessidade de ter que fazer o seu trabalho melhor do que os outros. “Na pandemia, o que a gente viu foi a necessidade de isolamento. Mas o advogado negro, por exemplo, entende que precisa ser melhor em todos os âmbitos da vida e sobretudo profissional para a manutenção de um status ou até é de um posto de trabalho que conseguiu chegar depois de muita luta. Esse sujeito deixa de lado o autocuidado em prol da manutenção desse espaço que ele conseguiu galgar”, apontou Souza.

Ele reforçou que tanto na morte de uma pessoa negra dentro de um hipermercado Carrefour por um segurança, por exemplo, como a morte em conflito policial o que aparece é o corpo negro. “Os corpos negros são tratados todos da mesma forma. Um corpo negro é um corpo em perigo 24 horas por dia. O negro é um corpo que precisa justificar a existência e muitas vezes isso não acontece porque não dá tempo. O sujeito no Carrefour não era um consumidor, era um corpo negro que precisava ser parado. Quando a gente pensa na questão da covid, a gente pensa o seguinte: o sujeito não consegue parar para pensar na saúde física e mental. Essas pessoas acabam contraindo mais covid justamente por estarem mais dispostas a esse lado social, mas a gente precisa pensar no lado psíquico também.”, apontou.

“Esse corpo negro ele não pode ficar isolado, porque precisa estar ativo o tempo todo. Isso justifica o motivo dele estar em determinados espaços elitizados, que são espaços de exceção”, apontou. “Eu fui o primeiro estudante cotista da UEL a concluir a graduação e o mestrado e o doutorado na UEL. No TCC eu falei sobre território e racismo. Eu nasci e morei a vida toda no Jardim União da Vitória e recentemente me mudei para o Jardim Quebec. Ser negro na União da Vitória e ser negro no Quebec é uma coisa muito distinta. Já tinham estudos sobre segregação não oficial no Brasil na academia, mas agora, o que acontece, o negro não aparece como tema, mas como sujeito. Eu sou um sujeito das minhas experiências e eu estou escrevendo sobre ser negro do União da Vitória e de ser negro em bairros elitizados.”, apontou.

“A gente sabe que a possibilidade de um negro ser morto pela polícia é três vezes maior do que a de um branco e a gente fala muito pouco ainda sobre a saúde psíquica da população negra, que ainda é vista pela sociedade e muitas vezes pelo próprio negro como corpo. Isso vai gerando um conjunto de violências psíquicas que os próprios negros não conseguem identificar, e seria preciso ajuda profissional, mas os profissionais psi (psicólogos, psicanalistas e psiquiatras) são eurocentrados e eles possuem dificuldades em compreender as peculiaridades da questão racial inserida nesse processo. Esses profissionais estão acostumados a uma neurose civilizacional e não veem a questão racial inserida nesse processo de negação do racismo e da questão negra. Isso também nos ajuda a entender o porquê desse índice tão alto de mortalidade por covid entre a população negra”, apontou.

“A psicanálise ainda não conseguiu cobrir essa preocupação com alguma singularidade dos indivíduos. Os modos dos sujeitos externalizarem as suas angústias entre as populações negras é canalizar as angústias através da música e, na minha perspectiva, o rap e o hip hop como um todo e através da literatura. A gente tem Conceição Evaristo que é uma referência, e também a Maria Carolina de Jesus, que vai falar sobre o cotidiano de uma favelada. Eu acho que a psicanálise está concentrada muito ainda numa fala do indivíduo, só que não auxilia o indivíduo a compreender algumas subjetividades que surgem através do racismo”, apontou.

“De forma universal, existem alguns traumas que são específicos da população negra, que é a negação do próprio corpo. Por exemplo, uma mulher que precisa alisar o cabelo e o homem, que precisa ter um tipo físico para ser aceito.”

“Eu, enquanto estudante universitário, quando estava em territórios como o bar Valentino ou escolas de inglês, enfim, alguns espaços ocupados predominantemente por pessoas brancas, eu era uma exceção nesses lugares. Em meu TCC eu problematizei porque alguns negros que têm condições econômicas para estar nesses lugares com baixa representatividade de negros preferem estar nos lugares onde há maior presença de pessoas negras. Foi isso que eu fiz também no mestrado e no doutorado. Eu falo basicamente o porquê da necessidade de políticas de ações afirmativas, mesmo com políticas universalistas que criam cotas só para estudantes de escolas públicas. A criação de cotas para estudantes negros de escola pública advém justamente por conta dessa negação histórica de que o negro pode ser médico ou advogado”, apontou.

Ele ressaltou que o início do desmonte de toda essa cultura que está eurocentrada começou com esse processo de implantar políticas de ações afirmativas que se iniciaram no início dos anos 2000, com as políticas de cotas.