As motocicletas se tornaram um dos maiores sonhos de consumo das famílias brasileiras do século 21. De acordo com a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2023 do IBGE (SIS 2023), é o único bem de consumo mais comum no grupo dos 20% mais pobres do que no grupo dos 20% mais ricos.

Entre 2003 e 2023, a frota cresceu 5,7 vezes, enquanto a de carros cresceu menos da metade (2,8). O veículo dos entregadores já está presente em 28% dos domicílios brasileiros (SIS 2023).

Um terço dos municípios tem mais motos que carros. Este ano, o número de motos no país deve ultrapassar as 34 milhões de unidades.

As vendas não param de crescer e devem ter um incremento de 20% este ano. A Secretaria Nacional de Trânsito, em estudo divulgado em agosto, calcula que as motocicletas devem representar mais de 50% dos emplacamentos de veículos em 2027.

Cerca de 40 milhões de brasileiras e brasileiros têm habilitação para conduzir motocicletas, muitos deles com objetivos profissionais ou de complemento de renda através da prestação de serviço para aplicativos de entrega.

Este movimento vigoroso na base da pirâmide social não está passando despercebido pela elite política e o assunto passou a ser um atalho de comunicação entre os governantes e as famílias de baixa renda.

Antes do fim do processo eleitoral, o governador Ratinho Junior anunciou que enviará à Câmara, provavelmente já em novembro, um projeto de lei para a apreciação da Assembleia Legislativa que isenta a partir do ano que vem os proprietários destes veículos com motorização de até 170 cilindradas, uma fatia gorda, de 77%, do total de veículos de menos de quatro rodas tributáveis.

De acordo com dados da Receita Estadual, a medida vai beneficiar um contingente maior que a população inteira de Londrina, Cambé e Ibiporã somadas. São 732 mil isenções e uma renúncia fiscal estimada em R$ 346 milhões, com média de R$ 474 por veículo.

"Com esse dinheiro que seria para pagar o IPVA, o proprietário de motos até 170 cilindradas vai poder comprar um presente para o filho, usar no seu dia a dia, ou mesmo para pagar a prestação do financiamento ou do consórcio da sua moto”, declarou o governador Ratinho Junior ao defender a medida durante o anúncio.

Na mesma ocasião, o secretário da Fazenda, Norberto Ortigara, sustentou que a isenção é uma ação importante para a economia dos paranaenses. “Essa é uma decisão importante para manter a renda na mão do cidadão. As famílias vão ver o dinheiro sobrar e vão poder usá-lo com alimentação, lazer ou com uma viagem — ou seja, movimentando ainda mais a economia do Estado”.

O movimento político para beneficiar os motociclistas com isenções fiscais começou em 2022, quando o plenário do Senado aprovou um projeto de resolução que permitia a isenção do IPVA para as motocicletas de 170 cilindradas, de autoria do senador Chico Rodrigues (União-RR).

A argumentação do autor era que cerca de 85% dos compradores de motocicletas pertencem às classes C, D e E, e que eles utilizam esse tipo de veículo para o deslocamento até o trabalho. De acordo com o senador, esses compradores têm menor poder aquisitivo e sofrem com a falta de transporte urbanos de qualidade. Quatro estados foram pioneiros em seguir a orientação do Senado: Acre, Paraíba, Sergipe e Santa Catarina.

Imagem ilustrativa da imagem Motocicletas se multiplicam, agora sob o olhar atento da política
| Foto: Roberto Custodio

O professor do curso de Ciências Econômicas da UEL, Michel Augusto Santana da Paixão, doutor em Economia, acredita que a medida vai afetar positivamente setores econômicos que prestam serviços de manutenção para os motoboys, como por exemplo as lojas que vendem peças.

“Acredito que esta renúncia fiscal só seja possível graças aos seguidos superávit nas contas do governo do Estado. Também acredito que a isenção esteja dentro de um entendimento: é preciso facilitar o acesso à regularização, já que uma pesquisa recente feita pelo Ministério dos Transportes revelou que mais da metade dos condutores trafegam sem carteira”.

De fato, o governo federal está estudando medidas para facilitar o acesso à Carteira Nacional de Habilitação dos motociclistas, uma negociação que envolve o debate com as autoescolas e que foi considerada “complexa” por Adrualdo de Lima Catão, o secretário nacional de Trânsito.

O custo da emissão, de cerca de R$ 4 mil, muitas vezes é mais cara que um veículo usado, segundo uma nota incluída no relatório final do “Panorama Estatístico Brasileiro de Motocicletas, Motonetas e Ciclomotores”, divulgado em agosto. O desafio, admite o Ministério dos Transportes, é simplificar e baratear a certificação das habilidades dos motociclistas sem que isso comprometa a segurança do trânsito.

Problema de saúde pública

Um dos paradoxos deste incentivo oficial para o uso da motocicleta no Brasil é a crescente participação desses veículos nos acidentes de trânsito.

Dados do Registro Nacional de Sinistros e Estatísticas de Trânsito (Renaest) compilados pelo relatório, indicam que os condutores e passageiros dos veículos de menos de quatro rodas representam 36% dos óbitos totais do trânsito, ainda que o número de acidentes representem apenas 25% do total.

“Essa discrepância indica uma maior vulnerabilidade dos motociclistas em sinistros de trânsito. Conclui-se que é essencial implementar medidas de segurança específicas para motociclistas, incluindo campanhas de conscientização e educação no trânsito, fiscalização rigorosa e melhorias na infraestrutura viária, visando à redução da mortalidade entre os condutores de motocicletas”, diz um trecho do relatório.

Um boletim epidemiológico do Ministério da Saúde publicado no ano passado, sob o título “Cenário Brasileiro das Lesões de Motociclistas no Trânsito de 2011 a 2021”, informa que o número de mortes (cerca de 11 mil) e a taxa de mortalidade (5,8 para 5,7 por 100 mil habitantes) de motociclistas ficaram estáveis no período, mas que a taxa de internações disparou. No intervalo de 10 anos, o crescimento foi de 55%, considerando apenas a rede do SUS e conveniados. Em 2021, o custo do tratamento destes pacientes para os cofres públicos atingiu mais de R$167 milhões.

No Paraná, a Secretaria Estadual de Saúde já emitiu relatórios com alertas sobre como os acidentes de moto impactam o sistema público. Em 2022 e 2023, 6.060 jovens de 20 a 29 anos foram internados por lesões de trânsito em hospitais públicos ou que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e 1.119 morreram em decorrência de acidentes no Paraná, parte considerável envolvendo motociclistas. As internações hospitalares dessa faixa etária custaram aproximadamente R$10,2 milhões.

Apoio dos deputados

Na Assembleia, o projeto do governador Ratinho Junior que zera o IPVA deve ser bem recebido e aprovado sem muitas resistências. Para o presidente da Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicação, Gugu Bueno (PSD), a isenção é uma “grande conquista dos motociclistas do Paraná, principalmente para os trabalhadores que não querem se sujeitar a um transporte coletivo muitas vezes superlotado”. O deputado estadual acredita que não há nenhuma relação entre o aumento da frota de motos e o aumento no número de acidentes e que a decisão é “muito benéfica” para os trabalhadores paranaenses.

O presidente da Comissão de Saúde Pública, Tercílio Turini, avalia que não há nada que segure a expansão do mercado de motos, especialmente porque o veículo se tornou uma fonte de renda para muitos trabalhadores, além de ser uma alternativa às deficiências do transporte coletivo. Ele, portanto, presume que não é possível concluir que a isenção vai impactar no número de motos nas ruas nem nas estatísticas de acidentes. “O mercado cresce rapidamente há muito tempo”.

“É verdade que percebemos um grande número de jovens hospitalizados em UTI em decorrência dos acidentes de moto. Um alto custo financeiro para o SUS e um prejuízo na saúde destas vítimas que pode durar a vida inteira. Mas também trata-se de um problema antigo”, avaliou o deputado, descartando a relação clara da futura isenção com um possível risco de mais violência no trânsito.

Detran prevê renovação da frota

O diretor-presidente do Detran-PR, Adriano Furtado, julga positivo o projeto do governo porque o IPVA zero deve ajudar na renovação da frota. Ele explica que a isenção até 125 cilindradas de motos com mais de 10 anos de fabricação já vigorava e com o incentivo - englobando agora também os veículos novos de até 170 cilindradas - o mercado vai se movimentar, com muitas empresas preferindo atualizar a frota, com veículos mais seguros. “A fiscalização e a formação de condutores serão reforçadas, com a participação das empresas que possuem grandes frotas”, promete Furtado. Até o fim do ano, o Paraná deve passar a integrar o programa “Bom Condutor”, iniciativa do governo federal que dá descontos no comércio para quem não comete infrações durante mais de um ano.

O major Sérgio Dalbem - que comandou a Companhia de Trânsito do 5º Batalhão da Polícia Militar, a 2ª Companhia da Polícia Rodoviária Estadual, a diretoria da CMTU em duas passagens e que se notabilizou pelo sucesso de um programa de segurança para pedestres, o “Pé na Faixa” - acredita que o “boom” das motocicletas ainda está longe de acabar em cidades quentes como Londrina, com a demanda cada vez maior dos serviços de entrega. Na opinião dele, os municípios não estão preparados para este volume crescente no tráfego, com sistemas deficientes de sinalização.

Especialista em Gestão e Planejamento de Trânsito, o policial militar da reserva que também foi diretor de Trânsito em Arapongas, aconselha os gestores municipais a investirem na visibilidade da sinalização e, principalmente, em cursos gratuitos para condutores já habilitados. “As motocicletas são veículos mais ágeis que os automóveis, o que se torna uma armadilha em manobras em pequenos espaços. Com treinamento, o condutor entende melhor esta diferença, aprende a observar melhor a dinâmica dos carros e os olhos do motorista que está à frente, mirando os retrovisores interno e externos, e memoriza lições simples como o caminhão que vai virar à direita se desloca antes para a esquerda e vice-versa”.

Dalbem lembrou à Folha de um estudo empírico feito cinco anos atrás pelo Siate em Londrina que revelou algo surpreendente. Embora sejam mais transgressores, com avanços constantes no sinal vermelho, travessia de canteiros, rodar sobre a calçada, desrespeito às preferenciais, e outros hábitos imprudentes, os entregadores sofrem menos acidentes que os motociclistas que usam o veículo apenas para se deslocar de casa para o trabalho ou para fazer passeios. “Na ocasião, o levantamento mostrou que a cada quatro acidentes graves, apenas um era de entregador. A explicação é que o profissional cuida melhor da moto e as muitas horas sobre a moto desenvolve nele uma habilidade maior”.

Cursos gratuitos no autódromo

Em Londrina, onde circulam cerca de 93 mil motos, entre janeiro e setembro deste ano foram 1.846 acidentes envolvendo motociclistas, 76% do total de ocorrências. Nos três trimestres, a Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização informa que foram 20 óbitos de condutores ou passageiros de motocicletas, metade do total. Em relação aos feridos no trânsito, foram mais de 1,8 mil vítimas, dois terços do total.

A assessoria de comunicação da companhia frisa que a predominância das motos nas ocorrências é um fenômeno antigo e estável. Os números de 2014 e 2023 são praticamente idênticos (71% contra 72% do total de registros). A CMTU admite que a redução destes números é um grande desafio que envolve uma série de avanços como a obrigatoriedade de itens de segurança nos veículos (como o freio ABS nas motos e o de sensores nos veículos pesados para neutralizar pontos cegos) e a preparação efetiva dos condutores, mudanças que estão fora da alçada dos prefeitos. A companhia lembrou ainda que acidentes nas últimas semanas demonstram que a imprudência na pilotagem é um fator decisivo em muitos casos. “Nos cinco casos recentes com mortes, não houve o envolvimento de outros veículos. Dois colidiram contra postes, outros dois contra árvores e um outro perdeu o controle sozinho na pista”, enumera.

A companhia informou ainda que algumas medidas foram tomadas como a criação dos bolsões para motos em algumas avenidas e a redução da velocidade máxima em pontos críticos. A profilaxia também envolve a ampliação de pontos com fiscalização eletrônica para combater o excesso de velocidade e o avanço no sinal vermelho. Quem já tiver habilitação pode fazer um curso de pilotagem defensiva de quatro horas ministrado no fim de semana por instrutores da própria CMTU. A capacitação tem conteúdo teórico e prático (os exercícios são feitos no Autódromo Ayrton Senna) e é realizada quando um grupo de 12 interessados é formado. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas no site da CMTU.

Imagem ilustrativa da imagem Motocicletas se multiplicam, agora sob o olhar atento da política
| Foto: Folha Arte