Onze anos depois da promulgação da Lei Seca, o Brasil melhorou seus índices de violência no trânsito. O caminho para uma reeducação ao volante, no entanto, é longo, já que ainda há quem insista em beber e dirigir. Para especialista de segurança viária, a falta de um código processual para os crimes de trânsito dificulta a punição de infratores da Lei Seca. Para a PRF (Polícia Rodoviária Federal), porém, a mudança no comportamento de motoristas é gradual, mas está em andamento.

Chama a atenção casos em que o condutor assume o risco de dirigir embriagado mesmo levando os próprios filhos no veículo. Para Fernando Oliveira, policial rodoviário federal e chefe do Núcleo de Comunicação da PRF no Paraná, isso acontece porque em diversos círculos sociais beber e dirigir "ainda é uma prática aceitável".

“A crítica só costuma acontecer depois de eventuais tragédias já terem se consumado”, afirma. No fim de semana, um motorista que teria bebido capotou o carro diversas vezes na PR-445 entre o Distrito da Warta (zona norte) e Bela Vista do Paraíso. Dois filhos dele, de 5 e 7 anos, foram ejetados do veículo. “Com certeza as crianças estavam sem cinto de segurança”, afirma o tenente Wesley Xavier, do Corpo de Bombeiros.

O filho mais novo e o pai tiveram lesões leves e foram encaminhados à Santa Casa de Cambé. Já o menino de 7 anos teve traumatismo craniano e está internado no HU (Hospital Universitário), consciente e se recuperando bem.

No dia 22 de setembro uma motorista de Curitiba, também dirigindo depois de beber, capotou o carro com suas duas crianças. O teste do bafômetro com 0,47 mg/L. Suas filhas, gêmeas de oito anos, não tiveram lesões. Ela foi presa em flagrante, mas foi liberada após pagar fiança de R$ 1 mil.

Quando a Lei Seca começou a valer, em 2008, o Brasil registrava 38.274 mortes por embriaguez ao volante no ano. Em 2016, foram 37.345, de acordo com o Ministério da Saúde. Já as estatísticas de 2017 apontavam para 32.615 mortes. A projeção do CPES (Centro de Pesquisa e Economia do Seguro) feita no ano passado é de que a Lei Seca evitou 40.700 mortes e a invalidez por acidentes de 235 mil pessoas.

A legislação ficou mais severa com o passar dos anos. A última mudança foi publicada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) no final de 2018 e estabelece que o homicídio sob efeito de álcool ao volante significa que o infrator assumiu o risco de matar, passando a ser caracterizado como dolo eventual e não culposo (sem a intenção de matar).

COPO DE CERVEJA

A depender da sistemática do crime, o infrator ainda pode ser indiciado por homicídio doloso, com a intenção de matar a partir do momento que saiu dirigindo embriagado. Mas se com a fiscalização e legislação mais severas os números de mortes causadas por embriaguez caíram, o Brasil ainda precisa avançar no processo para aplicação das penalidades do trânsito, conforme opina Sérgio Carvalho, que faz parte do departamento de advocacy do Observatório Nacional de Segurança Viária.

Em caso de resultados no visor do bafômetro de até 0,04 miligrama de álcool por litro de ar expelido, o motorista é liberado, porque está na margem de erro do aparelho. De 0,04 mg/L a 0,33 mg/L, o motorista é multado em R$ 2.934 e perde o direito de dirigir por um ano. O valor da multa dobra em caso de reincidência em um período de 12 meses. Para resultados iguais ou superiores a 0,34 mg/L, ou seis decigramas de álcool por litro, além de multa e suspensão da carteira, o motorista também comete crime de trânsito.

O infrator está sujeito a detenção de seis meses a três anos, segundo o policial rodoviário federal Fernando Oliveira. “Um copo de cerveja, uma dose, já pode ser suficiente para gerar a infração administrativa. O resultado varia de organismo para organismo, conforme peso, sexo, alimentação nas últimas horas. O código vem sendo aprimorado ao longo dos últimos anos, inclusive com penas mais duras para embriaguez ao volante.”

Segundo Carvalho, a embriaguez ao volante ser afiançável está relacionada à confusão entre a aplicação dos crimes no meio jurídico porque o Código de Trânsito Brasileiro prevê o crime, mas não como processá-lo. Isso remete à aplicação ao Código Penal. Para o especialista, é necessária a incorporação da questão processual no Código de Trânsito. “Existe o Código Penal e o Código de Processo Penal. O Código Civil e o Código de Processo Civil”, lembra. A Lei Seca foi alterada em abril deste ano, ficando mais rigorosa e tornando o crime de homicídio no trânsito inafiançável.

“Lesão corporal também deveria ser inafiançável, porque a lei passou de detenção para reclusão. Porém, como o código não prevê a questão processual, recai no Código Penal brasileiro”, acrescenta Carvalho. Quando recai no Código Penal, entende-se que quando se trata de um crime de baixo potencial, fica permitida a fiança para que a pessoa responda o processo em liberdade, desde que o infrator seja primário, tenha residência fixa e trabalho lícito, princípios para responder o processo fora do cárcere.

O Código Penal prevê a questão da fiança e a calcula. O delegado pode arbitrar a fiança de um até cem salários mínimos, de acordo com Carvalho. “Também tem de se avaliar a condição financeira do infrator, não adianta colocar uma fiança impagável. O Estado tem de ser proporcional com a gravidade do crime praticado”, afirma.

Além disso, quando o processo do crime de trânsito recai no processo penal, há uma série de subsídios, segundo Carvalho. Ele explica que o crime de trânsito é uma infração do âmbito administrativo e que a lesão corporal e o homicídio são crimes do código penal. “O duro é quando você pega um advogado que tem conhecimento disso e conflita a questão do direito administrativo com o direito penal no Tribunal”. É uma brecha que começa desde a constatação de uma possível lesão corporal, no âmbito penal, no flagrante e instauração do inquérito e encaminhamento ao Ministério Público.

“Temos que caminhar o processo administrativo com o processo penal. Enquanto isso vemos pessoas fazendo absurdos, matando, fazendo a transação penal e respondendo por meio de pena socioeducativa enquanto a vítima não teve nenhuma chance", aponta Carvalho.

Há ainda a opção de acrescentar um código processual específico para o trânsito. Trata-se de estabelecer que o Código de Trânsito Brasileiro não preconize área administrativa, de acordo com Carvalho. “Praticou o crime, vai para o âmbito penal”, opina.

ACIDENTES MAIS LETAIS

Dados da PRF (Polícia Rodoviária Federal) de 2007 a 2019 mostram que carros e motos correspondem a mais da metade (60%) dos acidentes no País e que a falta de atenção dos motoristas corresponde a 1/3 dos acidentes (32,5%). Os acidentes causados por embriaguez são 5,6% da estatística.

O que mais mata no trânsito, de acordo com a PRF, são as ultrapassagens indevidas. Contudo, o fator álcool é importante, já que embora o pico do número de acidentes seja das 16h às 19h, é na madrugada (de meia-noite às seis) que os acidentes são proporcionalmente mais letais. A maior alta está nos finais de semana.

Segundo o policial rodoviário federal Fernando Oliveira, o Código de Trânsito tem um capítulo que trata especificamente de crimes de trânsito, a partir do artigo 302. Para Oliveira, o código explica como processar o autor do crime. Ele lembra que, no artigo 306, consta que “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência tem detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

Além disso, a embriaguez é agravante para casos de homicídio culposo, fazendo com que a pena máxima seja de oito anos. “Mesmo com o rigor cada vez maior da legislação e com mais fiscalização nas ruas e rodovias, um contingente considerável de motoristas ainda insiste em dirigir sob efeito de bebidas alcoólicas. Uma hipótese para esse fato é que a mudança de comportamento é algo gradual”, pondera. O policial ressalta ainda que a simples recusa ao exame do bafômetro já implica em multa de trânsito idêntica ao do resultado positivo do aparelho. “Se o motorista recusar o exame e também apresentar indícios de embriaguez, ele também pode ser preso, com base na constatação dos policiais e demais testemunhas, entre outras provas.”