Megaincêndios na Amazônia aceleram chance de colapso do bioma
De janeiro a agosto de 2024, mais de 1,77 milhão de hectares de floresta queimaram na região
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 19 de setembro de 2024
De janeiro a agosto de 2024, mais de 1,77 milhão de hectares de floresta queimaram na região
Jéssica Maes - Folhapress
São Paulo - Um incêndio que começou em 8 de agosto já queimou mais de 67 mil hectares na Terra Indígena Kayapó, na região do Xingu. Os dados são do programa Servir-Amazônia, da Nasa, que monitora a região com satélites.
Com tamanho equivalente ao de Florianópolis, o megaincêndio é apenas uma das frentes de fogo na Amazônia. A classificação é usada para queimadas com mais de 10 mil hectares - algo que vem se tornando cada vez mais comum.
"Nós estamos entrando não só na era do fogo, mas na era dos megaincêndios. É bem catastrófico", afirma Erika Berenguer, cientista sênior na Universidade de Oxford.
A pesquisadora conta que o primeiro megaincêndio no Brasil foi detectado em Roraima, em 1998, ano de El Niño, assim como 2023 e 2024 - este, um dos cinco mais fortes já registrados. O fenômeno prejudica a incidência de chuva sobre a Amazônia e é potencializado pelas mudanças climáticas.
"Num clima normal não era para a floresta estar queimando. Ela é muito úmida, o fogo naturalmente morre. Mas o que a literatura mostra é que, na amazônia como um todo, já houve um aumento de temperatura de 1,5°C em relação aos anos 1970", explica a bióloga, referência nos estudos sobre impactos do fogo nas florestas tropicais.
De janeiro a agosto de 2024, mais de 1,77 milhão de hectares de floresta queimaram na Amazônia brasileira, de acordo com o MapBiomas. O número representa cerca de 33% do total atingido no bioma no período - outros 38% queimados são áreas de agropecuária, em sua maioria pastagens, e 30%, vegetação nativa não florestal.
Neste ano, a taxa de áreas de floresta impactadas pelos incêndios na Amazônia quase dobrou em relação ao mesmo período de 2023, quando representava cerca de 17% do total.
No último mês, foram registrados mais de 38 mil focos de incêndio no bioma, o maior número desde 2010. Em 16 dias, setembro já teve mais de 30 mil focos e ultrapassou os 26 mil registrados em todo o mês em 2023, de acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Essa mudança no perfil das queimadas evidencia o nível extremo de seca e gera preocupação de que a floresta se aproxime do colapso, destacam cientistas.
"[Na seca,] a floresta fica mais inflamável e, se tem atividade de fogo perto dessa floresta mais inflamável, ela vai queimar mais", afirma Ane Alencar, coordenadora do MapBiomas Fogo e diretora de Ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa da Amazônia).
"Esse é o tipo de situação que pode acelerar um processo de degradação da floresta que vai ser difícil de recuperar", diz Alencar. "Se essas condições continuarem, vamos antecipar o momento em que a floresta não consegue mais voltar a ser o que era antes."
No chamado ponto de não retorno, devido ao avanço do desmatamento e da degradação, a Amazônia, que produz boa parte da água da qual ela mesma depende, não seria mais capaz de gerar chuva suficiente para manter suas características de floresta úmida. Isso levaria a uma alteração irreversível no bioma.
Estudos estimam que esse processo de savanização pode começar quando cerca de 25% da Amazônia tiverem sido destruídos. Não há consenso, porém, sobre qual seria exatamente o percentual mais crítico.
"Nós estamos realmente muito próximos de um ponto de não retorno da Amazônia, principalmente em toda a porção sul", afirma Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo).
"Se continuarmos nessa trajetória por mais duas, três décadas, até 2050 a gente passará do ponto de não retorno", diz o climatologista, que foi um dos responsáveis por cunhar o conceito.
Ele destaca que "a estação seca em todo o sul da Amazônia, mais de 2 milhões de km², ficou de quatro a cinco semanas mais longa nos últimos 40 anos", além de aproximadamente 20% mais seca. A região é uma das mais desmatadas do bioma.
Marina Hirota, cientista da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que liderou um estudo sobre o tema publicado na revista Nature em fevereiro, pondera que "o ponto de não retorno sistêmico é muito difícil de aferir".
Ela o compara à falência múltipla de órgãos no corpo humano: diferentes pontos vão parando de funcionar, um de cada vez, até que o todo colapse.
"O que temos observado é que existem pontos de não retorno locais. Por exemplo, no sudeste da Amazônia, já tem um aumento de temperatura considerável e uma estação seca mais alongada", diz. "Outro lugar que, neste momento, está passando por uma seca muito, muito extrema é o sudoeste, onde nascem os rios que alimentam o rio Solimões".
Nessas e em outras regiões da Amazônia, a degradação é outro fator importante. Esse processo de enfraquecimento da floresta é, ao mesmo tempo, derivado da presença do fogo e um facilitador para as chamas se espalharem.
A mata degradada é aquela que perde as suas maiores árvores, seja pelo corte seletivo para uso da madeira, pela proximidade de áreas desmatadas ou pela própria ação do fogo, abrindo clareiras. Isso permite a entrada de mais vento e luz do sol, deixando o ambiente mais quente e menos diverso.
André Lima, secretário do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática responsável pelas ações de controle do desmatamento, ressalta que, além dos impactos da seca extrema, o governo vê no aumento das queimadas em áreas de floresta na Amazônia um método de apropriação de terras públicas, em um momento em que o desmatamento teve redução significativa.
"O fogo está sendo usado como estratégia de desmatamento. Antes, se desmatava [primeiro] e queimava [depois] para eliminar o resíduo que atrapalha, sobretudo, a pecuária", explica.
Alencar, Berenguer e Hirota afirmam que só será possível saber com certeza se os incêndios florestais estão sendo usados como um método de grilagem após a temporada de queimadas, caso essas áreas sejam convertidas em pasto ou plantações.