Mães se unem para defender redução do uso de telas
Movimento criado em SP alerta para os malefícios do uso de smartphones na infância; página conquistou quase 30 mil seguidores em dois meses
PUBLICAÇÃO
sábado, 06 de julho de 2024
Movimento criado em SP alerta para os malefícios do uso de smartphones na infância; página conquistou quase 30 mil seguidores em dois meses
Pamela Destacio - Especial para a FOLHA
Em um mundo cada vez mais conectado, crianças e adolescentes não ficam para trás, e acabam se envolvendo com diferentes tecnologias desde cedo. É o que comprova a pesquisa TIC Kids Online Brasil feita em outubro do ano passado pelo Cetic.br, centro de estudos ligado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil. De acordo com os dados, 95% das pessoas entre 9 e 17 anos acessam a internet, com a maioria utilizando o celular. Deste percentual, 24% começam a usar a internet antes dos 6 anos, um aumento de 13% em relação a 2015.
O Movimento Desconecta surgiu para alertar sobre esse cenário. A ação coletiva, formada por famílias, médicos e educadores da capital paulista, alerta sobre a dependência digital nesta faixa etária e defende o adiamento do uso de celulares para os 14 anos de idade e acesso a redes sociais para os 16 anos.
O projeto ganhou forma em abril deste ano a partir de um grupo de mães no WhatsApp, criado para discutir a questão dos filhos que estudam na mesma escola. Preocupadas com os malefícios do uso excessivo de telas, seis delas se juntaram para impulsionar o movimento, tornando o assunto um dos mais discutidos publicamente nos últimos tempos.
Visando dar visibilidade ao tema e dialogar com outras famílias e escolas, as fundadoras criaram uma página no Instagram, que já atingiu quase 30 mil seguidores em dois meses, e um site que reúne diversas informações sobre a iniciativa.
Lá, está disponível também um manual com passo a passo para implementação da prática em instituições de ensino, além de uma série de outros materiais, amparados por pesquisas científicas, indicações de livros, movimentos semelhantes que serviram de inspiração e fontes especialistas no tema.
“O Movimento Desconecta nasceu da vontade de agir e da crença de que há soluções ao nosso alcance. Queremos trazer a decisão de volta aos pais para iniciar essa transformação. Acreditamos no poder de ações coletivas e queremos inspirar família a família, escola a escola, a se juntarem a nós nessa missão”, comunica o site oficial.
O programa foi apresentado pela primeira vez no início de junho, em uma reunião online que mobilizou 1800 pessoas. Entre elas, representantes de 360 escolas públicas e privadas, de 88 municípios e 18 estados, interessadas em aderir à proposta de redução de tempo de telas e aplicá-la em suas respectivas comunidades.
As integrantes, que atuam de forma independente e sem fins lucrativos, não se declaram contra a tecnologia, apenas a favor do seu uso equilibrado, que deve ser incentivado em ambiente escolar.
“Com o Movimento Desconecta queremos escrever uma história de esperança para os nossos jovens e criar uma ação coletiva. Acreditamos que em cada escola, em cada cidade do Brasil, haverá mães, pais e cuidadores, preocupados como nós e dispostos a agir em nome do amor por seus filhos. Estamos convocando essas famílias a formar uma rede e liderar a implementação do Movimento Desconecta nas suas respectivas comunidades escolares, inspirando pais de cada classe a aderirem ao acordo”, declara Camila Bruzzi, uma das criadoras.
A ação já ganhou destaque de profissionais influentes da área da saúde infantil, como Daniel Becker, Paulo Telles e Ana Escobar, que têm aproveitado o espaço para promover a conscientização com o público.
PERIGO A CURTO E LONGO PRAZO
Um dos apoiadores do Movimento Desconecta é Daniel Becker, pediatra, escritor, palestrante e ativista pela infância. Referência, ele também é parceiro de uma ação similar, a campanha Infância Livre de Telas, criada pela McCann Health Brasil para a Editora Timo, na mesma época.
À FOLHA, Becker explica por que a exposição a telas nesta faixa etária representa um risco à saúde a curto e longo prazo. A extensa lista de prejuízos ao desenvolvimento da pessoa inclui a redução da capacidade cognitiva, miopia, irritabilidade, sedentarismo, obesidade, isolamento, ansiedade, baixo rendimento escolar e privação do sono – que ele considera atualmente “a níveis epidêmicos” devido a hiperestimulação causada pelas plataformas.
Becker destaca o perigo de vídeos curtos, populares em redes sociais como o TikTok, que atraem facilmente os jovens com prazer instantâneo e fragmentam a atenção, contribuindo para o desenvolvimento de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Isso fica evidente na dificuldade de absorver o conteúdo de uma leitura, aula, filme ou até mesmo de uma conversa.
”Por isso fica interrompendo o tempo todo, já que o cérebro está treinado para mudar de tema de 15 em 15 segundos. Então ele, obviamente, perde a capacidade de concentração e, portanto, também de aprendizado”, explica.
O médico também alerta para a exposição de crianças e adolescentes a conteúdos violentos e inapropriados para a própria idade, além de outras questões de comportamento. Entre elas, por exemplo, a suscetibilidade a conflitos de autoimagem, em vista da realidade distorcida do mundo digital, e ao cyberbullying, cujo crescimento nos últimos anos colocou o Brasil como o segundo país com maior número de ocorrências, de acordo com o instituto Ipsos. “Eles perdem a capacidade de se relacionar. Não tem esse treino de ler e brincar, e brincar é a linguagem essencial da infância”, afirma o especialista.
A MUDANÇA COMEÇA PELOS PAIS
Luiza Brandão, psicóloga clínica, doutora pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em comportamento de crianças e adolescentes e estudiosa de telas há seis anos, também apoia a proposta do movimento. Ela entende que uma ação coletiva entre pais reduz os impactos negativos do adiamento do uso de celulares entre adolescentes, que, em outra realidade, poderiam ser afetados por uma possível exclusão social.
“Por isso a força do movimento vem de pais se conectarem uns com os outros. É um movimento que é inspirado em outros internacionais nessa direção também, porque é muito mais fácil para os pais sustentarem as pressões e para os adolescentes não serem impactados negativamente pela entrada mais postergada do celular quando isso acontece em grupo, quando esses adolescentes não estão isolados nesse lugar”, argumenta.
Para Brandão, o exemplo dos responsáveis dentro de casa é essencial para transformar essa realidade, e é por eles que a mudança deve começar. “Muitos pais olham para o tempo de tela dos filhos, mas não olham para o próprio. Então a primeira estratégia é observar de que jeito esta casa está usando as telas, quais são os combinados para a casa com relação à tela, não só as crianças e os adolescentes, e que em outras atividades estão sendo incentivadas de maneira geral”, aconselha.
Ela também recomenda que toda a família evite o uso de celulares, computadores e televisores, por exemplo, durante as refeições e antes de dormir. “Eventualmente, na casa, ter um lugar central para carregarem os telefones, por exemplo, para não serem carregados dentro dos quartos, e ter áreas da casa que são ‘tech free’. Entender como essa rotina é para os pais e que lazer que existem para esta família. De maneira geral, eu diria que, para a gente olhar para a redução de tela de uma criança e de um adolescente, a gente precisa começar pelo movimento familiar”, aponta.
A psicóloga garante que não existe um tempo saudável de uso para celular e redes sociais nas primeiras fases da vida. Como alternativa, ela indica práticas que priorizem o desenvolvimento saudável, bem como uma boa dinâmica de socialização. “Atividade física e tempo em natureza são hábitos altamente recomendados, assim como buscar entender quais são os interesses da criança e incentivar, por exemplo, práticas artísticas e musicais, para que essas crianças e esses adolescentes se fortaleçam nos seus interesses off line”, conclui.
NA PRÁTICA
Alguns dos sinais de alerta foram notados por Ana Flávia Stopa, 32, em seu filho mais velho. Há cerca de três anos, a advogada, moradora de Londrina, percebeu Arthur, então com 8 anos, mais agitado, ansioso, introvertido com a família e dificuldade de manter o foco.
Devido aos hábitos de rotina, ela suspeitou da dependência tecnológica e adotou algumas estratégias, como o controle parental do smartphone por meio de ferramenta de controle e segurança para famílias e limitação do tempo de TV diário.
“Antes era muito liberado e senti alteração no comportamento dele: mais ansioso, acelerado, não conseguia ficar concentrado e estava mais quieto. Tudo virava tédio. [Com a redução do tempo de telas,] teve melhora nas responsabilidades dele como tarefa, organização e ajuda em casa. Mas até hoje ele tem anseio pelo acesso que precisa ser limitado para que as obrigações sejam realizadas”, compartilha.
Enquanto mãe que pode ver de perto os potenciais efeitos, reconhece que a nova geração é altamente tecnológica, mas adverte sobre a normalização da realidade. “Essa nova geração está ansiosa e depressiva, pois as telas não oferecem vínculo afetivo, ouvido às emoções e sentimentos, então fica tudo reprimido e ao longo prazo a desconexão entre pais e filhos trará efeitos devastadores. Essa falta de conexão desperta nas crianças comportamentos desafiadores, além de fuga emocional em pessoas virtuais, desconhecidas que põe a integridade emocional e física dos nossos filhos em risco”, reflete.
Gabrielle Maria Iank, 28, também é um exemplo que se alinha ao movimento. Mas, no seu caso, tomou a decisão de limitar o uso de telas para sua filha ainda durante a gravidez, seguindo orientações do próprio pai, profissional da área da saúde, e do médico da família.
Atualmente, Kyre’ymba tem 1 ano e a mãe segue firme na missão de mantê-la afastada do mundo digital. “Eu fico assustada quando vejo crianças de 8, 9 anos já viciadas em tela. Com a minha filha eu pretendo ir levando pelo menos até uns 5 anos, e conforme essa demanda ficar insustentável, quero estipular tempo máximo de uso supervisionado”, assegura.
Iank acredita que, numa realidade diferente da que está propondo para a filha, a infância dela acabaria sendo limitada. “A criança precisa brincar, ter contato com experiências diversas, se movimentar, explorar. Uma das coisas mais importantes da infância ao meu ver é essa demanda pela exploração. É algo que, com o uso de telas, se perde. A criança fica inerte, sendo superestimulada por horas a fio, se assim for permitido”, afirma a cientista social.
Seguindo a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde), para impedir que a pequena se sinta atraída, Iank evita que pessoas usem celular próximo a ela e busca alternativas de entretenimento que priorizem a dinâmica familiar. A instituição orienta que crianças de até 2 anos de idade não tenham qualquer contato com nenhum tipo de tela.
“As pessoas precisam ter conhecimento sobre os malefícios que o uso de telas pode trazer, inclusive para nós adultos. Com isso, há a possibilidade de um uso consciente tanto para os adultos, quanto para os pequenos, que terão sua infância protegida”, defende.
Serviço
Site oficial: https://www.movimentodesconecta.com.br/
Página no Instagram: https://www.instagram.com/movimento.desconecta/
Daniel Becker: https://www.instagram.com/pediatriaintegralbr/