Incidentes recentes na França põem liberalismo em xeque REALI JÚNIOR, Correspondente
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sábado, 08 de janeiro de 2000
Paris, 08 (AE) Os defensores do liberalismo na França, que condenam o papel intervencionista do Estado, e até as empresas públicas começaram o ano por baixo. Perderam o primeiro round da disputa que mantêm com os que entendem ser necessário garantir um certo papel para o Estado e conter os excessos do liberalismo entre os quais o primeiro- ministro Lionel Jospin.
O vendaval que abalou a França no fim de ano está sendo usado para alimentar essa batalha entre as duas partes. A destruição provocada no país pelos ventos e pela maré negra causada pelo petroleiro Erika (que afundou) contribuíram para mostrar o importante papel desempenhado pelo Estado francês diante das catástrofes que surpreenderam o país.
Por isso, a pergunta é a seguinte: se toda a economia francesa estivesse nas mãos do setor privado (a França é um país de economia mista), a reação e os resultados teriam sido os mesmos e imediatos?
O exemplo do desastre ferroviário britânico do ano passado a rede ferroviária foi dividida entre numerosas empresas privadas revelou uma grande hesitação e imobilidade.
Atualmente, mesmo os defensores de um liberalismo sem fronteiras na França estão admitindo que não tiveram muita chance neste início de ano. Reconheceram a existência de uma grande diferença de diagnóstico nesses problemas, ilustrada por um comportamento diverso de duas grandes empresas francesas na administração dessas crises, a estatal EDF (energia elétrica) e a privada Totalfina (setor petrolífero).
A EDF assumiu imediatamente suas responsabilidades para restabelecer o fornecimento nas casas de mais de 3 milhões de franceses alguns milhares moram nos Alpes e na Savóia, áreas de difícil acesso em consequência da neve. Tudo foi feito muito rapidamente o sucesso obtido se deve também à solidariedade que une os franceses quando enfrentam tais circunstâncias , mesmo comprometendo a previsão de lucro da empresa no fim do atual exercício. A imagem de sua marca cresceu na opinião pública, segundo revelam as pesquisas.
O mesmo não ocorreu com a megaempresa privada Totalfina. Sua direção cometeu um enorme erro de comunicação, agindo como se não tivesse nenhuma responsabilidade no naufrágio do petroleiro Erika e suas consequências.
Só depois da poluição de 400 quilômetros de praias da Bretanha pelo petróleo e quando milhares de pássaros marinhos mortos já haviam sido recolhidos no mar, a direção da empresa, sob forte pressão da opinião pública, começou a admitir sua responsabilidade. Hoje, obrigada a fazer seu mea-culpa, ela se dispõe a financiar planos de recuperação da região e de indenização das vítimas. E arcar com o pagamento de uma conta das mais salgadas, calculada em 600 milhões de francos (cerca de US$ 120 milhões).
Dessa forma, as consequências da tempestade começam na França com uma verdadeira ode ao Estado e a seus serviços públicos. Jospin foi o primeiro a definir as responsabilidades do Estado: garantir a segurança dos franceses, controlar as forças do mercado e combater os excessos do liberalismo.
Imediatamente, o presidente gaullista Jacques Chirac, um defensor de uma economia moderna e aberta, elogiou em suas numerosas intervenções o papel do Estado e do serviço público diante de catástrofes como as que atingiram o país nos últimos dias. Ele também saiu em defesa dos dos serviços públicos tão estigmatizados nestes anos em que o liberalismo e as empresas privadas têm sido os únicos dignificados. Eles foram os responsáveis pela restauração, em tempo recorde, das infra-estruturas coletivas, contribuindo para a rápida normalização da vida do país.
Essa situação mostrou para muitos franceses que o mundo não é apenas um mercado, e a sociedade tem necessidade de regras. A economia deve estar a serviço da sociedade e não contra ela. O naufrágio do petroleiro constitui um exemplo negativo de uma globalização sem normas, onde muitas vezes os apetites excessivos são prioritários face à qualidade do meio ambiente e os interesses da população.
Outras áreas mais afinadas com o pensamento liberal explicam que não se deve também confundir Estado e serviço público, lembrando que os acontecimentos recentes na França destacam o exemplo de um serviço público eficaz, que nada tem a ver com o papel ideal do Estado na sociedade:só deve agir para tornar possível ou facilitar um projeto e não intervir diretamente.
Mais do que nunca, os recentes acontecimentos da França relançaram o debate sobre o verdadeiro papel do Estado na sociedade.