Curitiba - No pronto-socorro da pequena Cristalândia, no interior de Tocantins, ninguém fazia ideia do que estava causando as dores de ouvido e febres que atormentavam o pequeno Álvaro desde os 2 meses de idade.

Serviço do HC atende pacientes com doenças hematológicas cuja única opção de cura é o transplante
Serviço do HC atende pacientes com doenças hematológicas cuja única opção de cura é o transplante | Foto: Divulgação/HC

A mãe, Giovana Carvalho, estava indo cada vez mais longe em busca de respostas. Primeiro, foi aconselhada a ir a um hospital regional em uma cidade vizinha, mas novas infecções continuaram aparecendo sem causa conhecida. A criança foi, então, levada para capital do Estado, Palmas, onde seu quadro também continuou se agravando.

Depois de mais uma transferência, desta vez para Brasília (DF), finalmente veio o diagnóstico: Álvaro tinha uma imunodeficiência rara — a doença granulomatosa crônica —, com indicação para TMO (transplante de medula óssea).

Forçada a deixar o emprego de balconista enquanto ia de cidade em cidade com o filho, Giovana estava contando com serviços públicos. A criança precisava ser transferida para um hospital com serviço de transplante pelo SUS (Sistema Único de Saúde). A melhor alternativa era clara para a médica responsável por Álvaro na capital federal: encaminhá-lo ao serviço de TMO do CHC-UFPR (Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná), aos cuidados da equipe de TMO Pediátrico chefiada por Carmem Bonfim.

Álvaro — que completou seu centésimo dia pós-transplante na semana passada, com medula doada pelo pai — é um dos muitos casos de pacientes encaminhados ao HC todos os anos por médicos e instituições de todo o País que têm o hospital universitário como referência em TMO.

A reputação está ligada a uma história de pioneirismo: ali foi realizado o primeiro transplante deste tipo na América Latina, em 1979 — fato que completa 40 anos nesta terça-feira (15).

Quatro décadas e cerca de 2,8 mil TMOs depois da iniciativa liderada pelos médicos Ricardo Pasquini e Eurípedes Ferreira, o hospital realiza em torno de uma centena de transplantes por ano.

O serviço atende pacientes com doenças hematológicas cuja única opção de cura é o transplante — dentre elas, casos de leucemias agudas de alto risco de recaída, falências medulares como anemia aplástica severa e anemia de Fanconi.

A maioria envolve doadores aparentados ou não aparentados — os chamados transplantes alogênicos, mais complexos do que os transplantes autólogos (hoje, disponíveis em um número maior de instituições).

“O único serviço totalmente público do Estado que consegue atender todos os níveis de complexidade é o nosso”, explica o supervisor médico da UTOH (Unidade de Transplante, Oncologia e Hematologia) do CHC-UFPR, Samir Nabhan. “Existem poucos serviços públicos de transplante de medula óssea no Brasil com o mesmo nível de complexidade do HC”, diz.

O serviço atende a cerca de 15 leitos simultaneamente — número insuficiente para a demanda, apesar da criação de serviços de transplante em outros hospitais com o passar dos anos. A capacidade do HC supera 20 leitos, mas há falta de recursos humanos.

Serviço esteve na dianteira da evolução do TMO no Brasil

À época do primeiro transplante de medula óssea realizado pela equipe do HC, não havia sido feito no Brasil nada parecido com a iniciativa liderada por Ricardo Pasquini, que havia conhecido a técnica nos Estados Unidos, onde estudara entre 1969 e 1972.

O primeiro transplante bem-sucedido de medula entre seres humanos já havia ocorrido duas décadas antes, nos EUA, realizado por E. Donnall Thomas — que ganharia o Prêmio Nobel de Medicina em 1990. Mas o progresso havia sido lento até então: segundo o Fred Hutchinson Cancer Research Center, o procedimento com doadores de fora da família do paciente, por exemplo, só teria bons resultados a partir de 1979, também nos EUA, e complicações como infecções e a chamada doença do enxerto contra hospedeiro (quando as células da medula doada “atacam” o paciente) continuavam sendo um grande desafio para os médicos.

“Era uma técnica inovadora não só no Brasil, mas no resto do mundo”, conta o supervisor médico da UTOH do HC, Samir Nabhan.

Para o médico, hospital consolidou sua relevância ao longo destes 40 anos se mantendo na dianteira da evolução do TMO no País. A equipe do HC esteve à frente da introdução de cada avanço da área no Brasil: foi a primeira da América Latina a utilizar sangue de cordão umbilical para TMO, em 1992, e também a realizar transplantes com doadores não aparentados, em 1995.

Desde então, segundo Nabhan, melhorias em várias frentes permitiram índices de sucesso cada vez melhores — do desenvolvimento de medicamentos mais eficazes contra infecções até avanços na seleção de doadores. “Cada evolução da história do transplante de medula óssea no País aconteceu primeiro aqui. Por isso essa referência tão grande”, diz.

COMEMORAÇÃO

Os 40 anos do transplante pioneiro serão comemorados pelo CHC-UFPR com um evento no próximo dia 25. Haverá reinauguração do anfiteatro do Hospital de Clínicas em homenagem a Pasquini, que é professor da UFPR desde 1965 e chefiou o serviço de TMO de 1979 a 2008. Hoje, a divisão está sob responsabilidade técnica de Vaneuza Funke para pacientes adultos e Gisele Loth para a população pediátrica.

Ligação com universidade e apoio da iniciativa privada são marcas do serviço do HC

O supervisor médico da UTOH do HC, Samir Nabhan, lembra que foi necessário movimentar muitas áreas da UFPR para viabilizar um procedimento com tamanha dificuldade e necessidade de suporte clínico como é o transplante de medula óssea.

Hoje, o serviço mobiliza médicos, enfermeiros, técnicos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, dentistas e psiquiatras, entre outros profissionais.

Como consequência, a instituição avançou. “O desenvolvimento de um serviço com tanta complexidade dentro de um hospital universitário permitiu que outras áreas crescessem por conta das necessidades do transplante”, diz Nabhan.

A UFPR também acabou se tornando uma referência acadêmica na área, produzindo um grande número de dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre TMO. “Tudo isso fez a universidade crescer muito”, diz.

Nos últimos 30 anos, o serviço também teve apoio do Instituto TMO (antiga Associação Alírio Pfiffer de Apoio ao Transplante de Medula Óssea), que realiza uma série de ações em apoio ao serviço — incluindo a arrecadação de recursos.

Para Nabhan, a associação à iniciativa privada foi um dos fatores que contribuíram para o estabelecimento do serviço do HC como referência, juntamente com o suporte da universidade, o pioneirismo de Ricardo Pasquini e a excelência o do Laboratório de Imunogenética do HC, sob o comando de Noemi Farah Pereira.