Fogo em florestas não é um fenômeno raro. E quando ocorre, costuma deixar um rastro de destruição. A região de Maui, no Havaí, já registrou cerca de cem mortes por conta de um grande incêndio que aflige a população local; nas últimas semanas, a Grécia vem sendo atingida pelo fogo que já queimou uma área superior a 50 mil hectares.

Reportagens da Folha de Londrina acompanharam a situação do Estado
Reportagens da Folha de Londrina acompanharam a situação do Estado | Foto: Reprodução/Douglas Kupiosz

O incêndio florestal mais destrutivo do Brasil - e um dos mais graves do mundo - ocorreu no Paraná há 60 anos. Concentrado entre agosto e setembro de 1963, as chamas atingiram 2 milhões de hectares, cerca de 10% do território da época, deixaram mais de 5 mil desabrigados e vitimaram 110 pessoas.

Com a impossibilidade de controlar as chamas, o governo estadual decretou calamidade pública ainda em agosto, e um sem-número de pessoas foram mobilizadas para atuar no Paraná, inclusive com ajuda internacional.

A professora Marcia Filipak, 73, lembra como se fosse hoje da falta de chuva, das geadas constantes em junho e julho, e do início do incêndio incontrolável que mudou para sempre a história paranaense.

Nascida em São Paulo, ela passou a maior parte da vida no Paraná, e hoje reside em Jaboticabal (SP). “Lembro-me das pessoas comentando que todo aquele vermelhão no céu era o fim do mundo. Realmente o céu adquiriu uma cor alaranjada e causava medo”, aponta.

Filipak conta que seu pai, José Bernardes Martins, que à época trabalhava com venda de implementos agrícolas, fazia muitas viagens pelas regiões de Castro, Piraí do Sul, Guarapuava, Ponta Grossa e por municípios do Norte do Paraná.

“Numa viagem a Guarapuava fui junto com ele e tenho recordação de quando voltávamos, em alguns pontos havia fogo nas margens da estrada. Meu pai dirigia um Jeep com capota de lona. Fiquei apavorada achando que o Jeep poderia ser atingido pelo fogo”, lembra a professora, pontuando que aqueles foram dias difíceis. “Ficávamos sabendo das lavouras totalmente destruídas, das pessoas que perderam suas moradias e daqueles que perderam suas vidas.”

O pai de Filipak tinha o costume de manter um diário, anotando as atividades da empresa e do cotidiano dele. Em uma passagem, ele diz que não pôde ir a um determinado lugar “porque a região estava coberta de fogo”.

O professor Ronaldo Viana Soares, do FireLab (Laboratório de Incêndios Florestais) da UFPR (Universidade Federal do Paraná), explica que as causas foram as queimadas e as condições climáticas favoráveis - a falta de chuva e a ocorrência de geadas.

“Não foi um foco de incêndio só. Teve um foco principal entre os municípios de Curiúva, Telêmaco Borba, Tibagi e Ortigueira, que foi o mais complicado, o mais destrutivo. Mas teve quase pelo Estado inteiro”, explica Soares.

Ele ressalta que aquele foi o primeiro incêndio de grande impacto no país, e sem uma técnica de combate eficaz, o fogo foi se avolumando. “A história dos incêndios florestais no Brasil começou em 1963, com o incêndio do Paraná, porque até então não havia nada. Depois que se começaram a tomar iniciativas para se montar estruturas de combate”, acrescenta Soares, que veio para o Estado em 1964, ainda estagiário de Engenharia Florestal, e presenciou a vegetação carbonizada.

Segundo o professor, atualmente ocorrem menos incêndios florestais, mas eles tendem a ser mais destrutivos porque há acúmulo de material combustível. “Os fatores umidade relativa do ar e temperatura podem aumentar a intensidade do fogo, como é o caso da Grécia”, explica, ressaltando que a maioria dos casos é causado por ação humana.

ESTUDO

A professora e pesquisadora Letícia Paixão Furlaneto, que estudou o desastre ambiental em seu mestrado na UEM (Universidade Estadual de Maringá), destaca que a maioria das fontes aponta a estiagem, a geada e as queimadas como fatores para os incêndios, mas que é necessário considerar outros aspectos.

“É importante pensar que em 1963 já estava acontecendo a erradicação do café por conta das geadas - pouco expressiva, mas importante levar em consideração -, e já estava acontecendo a substituição por milho e soja. Além das questões climáticas, as mudanças da paisagem também contribuíram para o fogo se alastrar”, explica.

Os resultados da sua pesquisa foram publicados na dissertação “‘Seca, geada e fogo’: considerações sobre um desastre ambiental (Paraná, 1963)”, em 2015. O interesse de Furlaneto pelo assunto surgiu logo no início da sua graduação em História, quando recebeu de um professor o relatório elaborado pelo governo do Estado e passou a investigar o tema.

“Durante o mestrado eu aprofundei as pesquisas utilizando principalmente as reportagens de jornais e revistas da época. Nesse período conheci o senhor Armínio Kaiser, já falecido, que era engenheiro agrônomo do antigo IBC (Instituto Brasileiro do Café) e me presenteou com a sua coleção de fotografias, inclusive algumas dos incêndios”, conta. “Então, durante esse processo, eu contei principalmente com as reportagens para construir a memória dos incêndios.”

Orientador de Furlaneto, o professor Angelo Priori, do Departamento de História da UEM, afirma que o incêndio tem chamado atenção dentro do campo da História Ambiental. “É o estudo da história do meio ambiente, que são esses desastres naturais, mas também os desastres provocados que impactam diretamente as populações humanas”, afirma, pontuando que o Estado já havia registrado incêndios na década de 1950.

Priori ressalta que, com a declaração de calamidade pública, foi feita uma campanha internacional, e que o presidente da época, João Goulart, também fez uma intensa ação humanitária de ajuda para o Estado.

O médico José Gimenes, 71, tinha 12 anos à época do desastre e diz que não chegou a ver os incêndios, mas lembra da dificuldade para respirar. “Acho que pelo ar muito seco”, conta.

A família dela era natural de Sertãozinho (SP), mas em 1963 já havia se mudado para Londrina. “Ouvi dizer que na Catedral de Londrina davam leite em pó e farinha de mandioca para os mais necessitados. Cheguei a ver uma embalagem com duas mãos se cumprimentando, a Aliança para o Progresso, que era ajuda norte-americana”, lembra. “Meu pai tinha uma vendinha e os homens faziam apostas sobre quando a chuva viria. Ficou sem chover por mais ou menos sete meses.”

LIVRO

Em seu livro “1963: O Paraná em chamas”, o geógrafo José Luiz Alves Nunes apresenta um extenso trabalho de pesquisa sobre o desastre ambiental, reunindo documentos oficiais, notícias de jornais e relatos de moradores.

O autor aponta que “a prática das queimadas no campo foi o principal fator que desencadeou a tragédia no Paraná”. Nunes escreve que o fogaréu atingiu 128 dos 166 municípios da época, “ceifando vidas, sonhos e esperanças de várias gerações”.

A região de Maui, no Havaí, já registrou mais de cem mortes por conta de um grande incêndio que aflige a população local
A região de Maui, no Havaí, já registrou mais de cem mortes por conta de um grande incêndio que aflige a população local | Foto: Patrick T. Fallon/AFP

PREVENÇÃO

Para Soares, o principal ponto para a prevenção a incêndios florestais é a educação ambiental da população. Ele cita dados do FireLab que indicam a maior parte dos casos é causada por incendiários - motivados por conflitos ou tentativas de vingança; em segundo lugar aparecem as queimadas para limpeza, quando não realizadas com a técnica adequada para evitar a proliferação do fogo; e a terceira é a displicência de fumantes ao descartar cigarros ou fósforos ainda acesos na vegetação seca.

O professor foi responsável pela criação, em 1972, da FMA (Fórmula de Monte Alegre), um índice que estima o perigo de incêndios florestais.

REGISTRO NA FOLHA

O primeiro registro dos incêndios de 1963 na FOLHA ocorreu na edição do dia 14 de agosto, no texto “Incêndio devasta plantações e matas ao sul do município”. A notícia aponta que as chamas já haviam atingido “uma área de 5 mil alqueires” nos distritos de Guaravera, Paiquerê e Tamarana. “Em virtude da prolongada seca que vem assolando o Estado, será difícil debelar ou circunscrever o fogo, se não chover nos próximos dias”, já previa o texto.

Na edição do dia 20, a FOLHA destacava, no texto “Incêndios semeiam o pânico nas regiões rurais do Paraná”, o início da destruição provocada pelo fogo. A notícia indicava que as chuvas fracas não foram suficiente para conter as chamas que também atingiram os municípios “de Congonhinhas, São Jerônimo da Serra, Umuarama, Cianorte e outros, onde também se produziram grandes queimadas, com vultosos prejuízos para um grande número de propriedades agropecuárias”. O texto citava danos em casas, matas e animais de criação.

Quatro dias depois, em “Fogo nas zonas rurais: êxodo em massa de gente e animais”, a FOLHA atualizava a situação dos incêndios, destacando que era “quase de calamidade pública”. Ainda aponta que muitas pessoas estavam deixando os campos e indo para as cidades, e que rebanhos estavam sendo evacuados “no atropelo da fuga às chamas”.

A longa reportagem “Drama paranaense em 2 atos: geada e fogo”, publicada no dia 27, traz um relato do jornalista Wilson Silva: “O inferno existe. Eu sei disso porque vim de lá. Na área compreendida pelos rios Paranapanema, Paraná, Ivaí e Piquiri, o Diabo fundou uma sucursal das profundezas. Pude sentir a intensidade do drama nos olhos do homem estático, à beira do corredor fumegante. Sem casa, sem roça, sem animais, sem fé, sem esperança. Perdera ele a batalha do fogo, depois de derrotado pela geada”.

A tragédia continuou a pautar as páginas do jornal no restante do mês de agosto, destacando os esforços políticos para lidar com a situação, e o rastro de destruição que as chamas deixaram. Em setembro, o governo do Estado já havia mobilizado vários setores para combater os incêndios, e começa a aparecer o termo “flagelados” para se referir às vítimas.