O mês de fevereiro de 2023 amanheceu com ares apocalípticos e com a atenção de todo o planeta sobre a Ucrânia. As tropas russas cruzaram a fronteira no dia 24 e iniciaram a invasão do território no maior conflito no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

O exército de Vladimir Putin ignorou até o “solo sagrado” de Chernobyl e marchou sobre a cidade fantasma, palco da maior catástrofe radioativa da história em 1986. A paz fúnebre dos mortos foi interrompida pela crueldade da guerra dos vivos.

Mísseis, cidades bombardeadas, mercenários armados interromperam o cotidiano do povo ucraniano que do dia para noite foi obrigado a fazer a triste escolha entre abandonar tudo e se tornar um refugiado ou enfrentar os horrores de uma guerra. Os dois caminhos levavam os ucranianos para o mesmo destino: a dor, seja ela física para os feridos e mortos ou emocional para quem perdeu quem ama.

Se a invasão da Ucrânia justificada pelos russos pela aproximação do presidente Volodymyr Zelensky com a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) se tornou uma questão diplomática ou econômica para a maioria dos países e a ampla cobertura mundial arrefeceu, a guerra continua sendo uma realidade sem esperança para os ucranianos, que convivem com um conflito em escalada após um ano com nenhuma perspectiva de um ponto final.

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Enquanto o mundo acompanha superficialmente o conflito em mapas mais parecidos com uma partida de War, a professora ucraniana Katherina Hodick acorda todos os dias com as lembranças frescas na memória da guerra na capital Kiev e com uma missão: entrar em contato com o marido, amigos e familiares que permanecem na Ucrânia.

No dia 13 de janeiro, a professora de literatura foi recebida na UEL (Universidade Estadual de Londrina) como a segunda cientista ucraniana que vai atuar como pesquisadora visitante no Programa Paranaense de Acolhimento aos Cientistas Ucranianos, desenvolvido pela Fundação Araucária.

Com olhos firmes e emoção na voz, ela lembra do drama dos cidadãos surpreendidos pela crueldade de granadas deixadas nas casas dos civis em geladeiras e máquinas de lavar. Longe dos horrores, ela tenta seguir a carreira, mas ainda prefere não falar sobre o futuro por causa da realidade ucraniana.

“Cerca de 20 mísseis caíram bem na região onde eu morava. Meu marido, meus pais e sogros moram nesta área. Então, sempre que eu entro em contato com eles fico sabendo de algo, e hoje (25 de janeiro) um homem morreu ali perto, ainda não sei quem é e nem quais são os detalhes, mas ele morreu por destroços de um míssil que caiu ali em Kiev. Todos os dias eu checo as notícias, e vejo que algo acontece”, relatou a professora de literatura em entrevista à FOLHA.

Katherina também lembrou, com orgulho, do trabalho da melhor amiga Irina, que coordena uma organização que resgata animais domésticos de locais afetados pelos bombardeios. A Zoo Patrol acolhe animais que ficaram desamparados após a morte dos donos e necessitam de comida e abrigo.

“Além de esconderem as bombas dentro das casas, em geladeiras, máquinas de lavar, móveis, as casinhas dos cachorros também são alvos dos russos. Então, os animais estão numa posição muito vulnerável.”

LITERATURA

Katherina pretende resgatar a literatura entre os descendentes de ucranianos que vivem no Brasil por meio das memórias passadas de geração em geração sobre a cultura do país no Leste Europeu. Ela quer mostrar para as pessoas durante palestras, as diferenças entre a literatura russa e ucraniana, a última ainda pouco difundida mundialmente.

“Eu sei que aqui no Brasil as pessoas conhecem bastante literatura estrangeira, da Alemanha, da França, mas na maioria das vezes que as pessoas falam sobre literatura eslava, se referem à Rússia. As pessoas não falam da literatura ucraniana, não encontramos nem professores que trabalham com isso, e não é porque a literatura russa é melhor. Para você ter uma noção, a literatura ucraniana é até mais antiga, mas a Rússia tem mais recursos financeiros para divulgar suas produções”, analisou a professora, que ainda ressaltou a presença de literatura barroca na Ucrânia, o que não existe em território russo.

Entre os projetos que devem ser desenvolvidos na UEL, o tutor da docente ucraniana, professor Frederico Garcia Fernandes, informou que Katherina deve realizar palestras na comunidade ucraniana em Arapongas, na região de Londrina, e também a universidade pretende lançar uma antologia de textos de autores ucranianos na língua original e com versões traduzidas para o português com objetivo de disseminar a literatura do país eslavo.

EMBAIXADA

Há seis meses em Londrina, a pesquisadora em microbiologia Mariia Boiko foi a primeira docente ucraniana a ser recebida na UEL, por meio do programa da Fundação Araucária. Quando a guerra começou, ela estava em Brasília e ajudou o marido, o cônsul da Embaixada da Ucrânia Viktor Boiko, nos trabalhos humanitários e de diplomacia na crise iniciada pela invasão russa.

“Foi muito difícil. Tivemos muito trabalho na Embaixada para entrar em contato com as pessoas, ajudar refugiados e com o envio de auxílio humanitário. Trabalhamos sem parar, sem folgas ou fins de semana. Além disso, eu trabalhei diretamente na tradução das notícias do ucraniano para línguas inglesa, francesa e também para o português”, lembrou.

Na Ucrânia, ela é doutora em controle de insetos na microbiologia agrícola, mas passou a pesquisar novas áreas após a chegada na UEL. “Aprendi muito sobre biologia molecular e fiz análises de testes de Covid-19 (PCR), extração de DNA e RNA e outras experiências importantes para minha carreira”, avalia. A pós em microbiologia da UEL é altamente conceituada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) do Ministério da Educação.

Segundo informações da Fundação Araucária, 11 pesquisadores integram o Programa Paranaense de Acolhimento aos Cientistas Ucranianos e estão distribuídos nas seguintes universidades: UEL (2), UENP (1), PUC (1), IFPR (1), Unioeste (1), UEPG (1), Unila (1), UTFPR (1) e Unicentro (2).