Genética dominará o ano 2000
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quinta-feira, 06 de janeiro de 2000
Por Thomas Hayden
Nova York (AE-NEWSWEEK) - Desde que James Watson e Francis Crick determinaram a estrutura do DNA, em 1953, nos dizem que a ciência da genética ia logo mudar tudo, da medicina à reprodução dos seres humanos. Bastava entender exatamente como essa substância química controla a vida e as atividades de nossas células. Não tem sido tarefa fácil.
O código genético relativamente simples - quatro bases químicas, ou letras, que se combinam em três para fazer os códons, ou palavras, que ditam a estrutura das proteínas - foi decifrado nos anos 60. Desde então, cientistas desenvolvem técnicas cada vez mais sofisticadas que isolam, estudam e manipulam DNA e suas unidades funcionais, os genes.
Os resultados estão em toda parte - DNA como "impressões digitais" para investigar suspeitos de crimes, novos meios de visualizar as bases do câncer, potentes métodos de rastreamento para doenças de origem genética. Mas, apesar de todas as manchetes, a última década pertenceu à computação, não à biologia.
Isso está na iminência de mudar. No decorrer de um ano, a ciência da genômica (genomics no original - é neologismo) - que estuda todo o conjunto de instruções moleculares de um organismo
ou genoma, em vez de só uma instrução ou gene de cada vez - vai começar a cumprir a promessa da revolução genética.
O que isto significará, quais novos produtos serão postos no mercado, como nossas vidas mudarão para melhor (e talvez para pior) nos próximos 10, 20, 100 anos - impossível dizê-lo.
Mas sabemos que logo veremos avanços na genômica que talvez reduzam a informática à condição de segunda colocada em matéria de avanços científicos mais importantes no século 20. "Acredito sinceramente que estamos atravessando o maior momento intelectual de todos os tempos", escreve o britânico Matt Ridley em seu novo livro "Genome: The Autobiography of a Species in 23 Chapters". O ano 2000 vai pertencer ao gene.
As bases para a revolução que se avizinha foram assentadas pelo Projeto Genoma Humano (HGP). Esta iniciativa internacional foi lançada uma década atrás com um objetivo ambicioso: estabelecer a sequência de todo o genoma humano até 2005.
Os participantes afirmaram que, em 15 anos, leriam e colocariam em ordem os 3 bilhões ou mais de letras químicas que compõem os 80.000 genes humanos. Isso daria aos pesquisadores o conjunto completo de instruções para criar, manter e reproduzir um ser humano.
Com esse manual disponível, os cientistas teriam as informações fundamentais necessárias para começar a entender - e consertar - a máquina humana. A tarefa não era apenas assombrosa em 1990. Era impossível. O HGP começou produzindo descrições detalhadas, ou mapas, do genoma humano, informações básicas necessárias para colocar a sequência do DNA em ordem.
Conforme previsto, avanços tecnológicos - muitos deles desenvolvidos com recursos do HGP - foram-se encaixando. Até uma década atrás, ler uns poucos milhares de letras químicas, ou bases, bastava para conseguir um título de doutorado.
O equipamento foi miniaturizado, automatizado e produzido em massa, tanto assim que um aparelho encarregado de estabelecer sequências tem o tamanho de um computador de mesa e agora consegue ler 500.000 bases num só dia.
Com que frequência vultosos projetos governamentais informam que estão abaixo do orçamento e à frente dos prazos? O HGP faz disso uma rotina.
Em março passado, chefes do projeto anunciaram que terminarão um primeiro rascunho do genoma na primavera de 2000, cinco anos antes do planejado a princípio. "Na verdade, ter a sequência parecia uma dessas hipóteses tão distantes que era difícil imaginar. E agora podemos sentir seu sabor", disse Francis Collins que, como chefe do Instituto Nacional de Pesquisas do Genoma Humano, supervisiona o grosso da contribuição norte-americana ao HGP.
Ainda assim, houve uma surpresa. Em maio de 1998, uma companhia privada, a Celera Genomics, anunciou que planejava estabelecer a sequência do genoma humano sem depender do governo
com dinheiro próprio.
Empregando uma técnica chamada "sequenciamento de espingarda", em que fragmentos de DNA tomados ao acaso são lidos fora de ordem e depois emendados usando sofisticados algaritmos de computador, a companhia planeja apresentar uma leitura completa do genoma humano antes do fim de 2000. O anúncio da Celera assombrou a comunidade de pesquisas e fez com que o HGP acelerasse seus esforços.
A Celera é o mais recente projeto de Craig Venter, geneticista que já trabalhou para a polícia federal dos Estados Unidos e saiu para abrir um negócio de pesquisas próprio, em 1992. Ele fez carreira e uma modesta fortuna balançando o establishment das pesquisas genômicas. Venter fundou The Institute for Genomics Research (TIGR), dizendo-se frustrado com o lento avanço e com a burocracia nos laboratórios governamentais.
Logo se tornou o primeiro a estabelecer a sequência de um genoma completo, pertencente a uma bactéria, e depois completou várias outras, incluindo as que causam úlcera e o Mal de Lyme.
Em 1998, Venter afastou-se da TIGR (sua mulher e companheira de trabalho, Claire Fraser, agora chefia a companhia, que já estabeleceu a sequência de uma dezena de genomas, metade de todas as feitas até agora) para fundar a Celera.
Seu sócio na empreitada, Perkin-Elmer, é grande fornecedor de equipamentos de laboratório, entre eles as máquinas automatizadas em uso para estabelecer a sequência de DNA. Com o dinheiro de Perkin-Elmer e a energia criativa de Venter, a Celera partiu para o estabelecimento da sequência do genoma humano por contra própria.
A corrida para estabelecer a sequência do genoma é mais que uma simples disputa de território, diz Collins. "O genoma humano deveria ser patrimônio comum da humanidade", opina ele. "Não estamos nada contentes com a idéia de que as sequências podem ficar presas a patentes, licenças e acordos sobre sigilo."
Os cinco principais laboratórios de sequenciamento do HGP depositam as novas informações sobre as sequências num banco de dados público, o GenBank, a cada 24 horas. Toda vez que eles o fazem, diz Collins, impedem que outra peça do genoma - cerca de 10 milhões de bases por dia - seja patenteada.
Venter diz que a Celera não se interessa em demarcar para si grandes faixas de DNA humano. Ao contrário, planeja ganhar dinheiro ajudando companhias a entender dados disponíveis de graça. Portanto, o estabelecimento das sequências do genoma torna-se apenas um custo inicial para uma vasta operação de uso dos dados.
"Não estamos bloqueando nada", diz Venter. "Colocamos à disposição, de graça, a sequência humana primária a qualquer cientista que a queira."
Embora haja tensão entre o governo e as companhias privadas, talvez ainda exista esperança de colaboração. O primeiro grande acontecimento da genômica em 2000 vai ser provavelmente a publicação, em fevereiro, da sequência completa do genoma da mosca-da-fruta, a Drosophila melanogaster. A mosca-da-fruta é o burro de carga dos estudos em genética e biologia do desenvolvimento - mais de 6.000 laboratórios de pesquisas no mundo todo estudam a mosca -, e é o modelo de muito do que sabemos sobre herança, desenvolvimento e crescimento humanos. Ela também pode servir de modelo para a cooperação entre as iniciativas pública e privada para estabelecer sequências de genes.
A Celera e Gerald Rubin, chefe do Drosophila Genome Project na Universidade da Califórnia em Berkeley, trabalharam juntos no genoma da mosca. A Celera usou sua técnica de sequenciamento para produzir grande parte dos dados brutos, ao passo que a equipe em Berkeley forneceu as informações em profundidade necessárias para amarrar tudo com perfeição.
Venter diz que "esse é o jeito como a colaboração científica deve ocorrer. Todo mundo sai ganhando, porque recebemos as informações mais depressa." Nesse ponto, Collins e Venter parecem concordar. "Precisamos das informações se quisermos resolver problemas como o da diabete, hipertensão e esquizofrenia", diz Collins. "Quero fazer com que isso aconteça do modo mais rápido, dentro do humanamente possível."
Depois que o esboço do genoma humano ficar pronto na próxima primavera, as atenções se voltarão para o rato. "Se terminarmos o humano bem depressa", diz Venter, "talvez consigamos terminar o do rato também no correr do ano." A corrida do sequenciamento começa a parecer um comercial de tevê altas horas da noite que anuncia utensílios de cozinha. "Mas esperem, ainda tem mais!" E podem apostar que sim.
Aos animais se juntará a primeira planta a passar pelo estabelecimento das sequências - uma erva chamada Arabidopsis, que é, para o reino vegetal, o que a mosca-das-frutas é para o reino animal. Não vai ser tão emocionante quanto o genoma humano
talvez, mas, com 20 milhões de hectares de culturas geneticamente modificadas só nos EUA, a procura de informações sobre genomas vegetais é enorme.
Cientistas agrícolas dizem que os dados vão ajudá-los a engendrar toda uma nova geração de culturas geneticamente modificadas, mais nutritivas, que se desenvolvem com maior rapidez e precisam de menos pesticidas do que a natureza ou os cientistas já criaram. Depois disso, "vem toda uma lista de outros organismos à espera, argumentando por que devem ser os próximos", diz Collins.
O peixe-zebra (Brachydanio rero), cujo embrião transparente tem sido o objeto predileto de estudo dos cientistas que pesquisam a fase inicial do desenvolvimento, pode vir depois do rato, embora a ratazana também seja um forte candidato. E carradas de micróbios, entre eles o parasita da malária e o Vibrio cholera, causa bacteriana da doença homônima, também devem estar com seu estudo completo em 2000.
Collins compara a conclusão do genoma humano ao estabelecimento da tabela periódica dos elementos. Essa proeza, no século 19, permitiu que a física evoluísse, deixando de ser uma disciplina baseada em palpites e se tornando uma ciência aplicada, uma ciência da previsão.
A conclusão do mapeamento do genoma humano dará à biologia as informações básicas de que ela precisa para deixar de simplesmente descrever a vida e ser capaz de controlá-la. "Cada doença e traço tem um componente genético", diz Venter. "Vamos partir firmes para entender isso em 2000. E é o que vamos estar fazendo nos próximos 100 anos."
Compreendendo a base genética do câncer, digamos, os cientistas poderão finalmente encontrar meios de revertê-lo. A descoberta de cura para os tipos de câncer comuns "ainda vai demorar", diz Collins, "mas agora há um caminho para chegar lá
e só precisamos percorrê-lo."
O mesmo se aplicará a outras coenças, como o Mal de Alzheimer e a diabetes, e talvez até o processo do envelhecimento. Em outras palavras, completar o estabelecimento da sequência de um genoma não é o fim do percurso. Ao contrário, o ano 2000 assistirá ao início de uma era em que a humanidade começará a assumir o controle de seu destino biológico.