SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A fome, a falta de renda e a desinformação têm contribuído decisivamente para o descumprimento de medidas adotadas para conter o coronavírus em áreas carentes das maiores cidades do país, de acordo com uma enquete feita com líderes comunitários de seis regiões metropolitanas.

A necessidade de buscar trabalho em meio à paralisia da economia e a falta de coordenação entre as autoridades envolvidas com o enfrentamento da pandemia têm agravado a situação, indicam os depoimentos dessas lideranças, colhidos por pesquisadores ligados à USP (Universidade de São Paulo).

O grupo faz parte da Rede de Pesquisa Solidária, articulada por várias instituições acadêmicas. A enquete ouviu 72 líderes que vivem em comunidades carentes das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Manaus e do Distrito Federal, entre os dias 5 e 11 de maio.

Problemas ligados à insegurança alimentar foram apontados como a maior preocupação por 74% dos líderes ouvidos na enquete.

Segundo eles, iniciativas de governos, empresas e organizações da sociedade civil para distribuir cestas básicas em favelas e bairros pobres têm sido insuficientes para resolver o problema. Filas e disputas entre as famílias pelos alimentos doados têm sido frequentes, de acordo com os entrevistados.

Para 61%, a falta de trabalho e renda tem criado dificuldades. Além da falta de comida, 26% dos ouvidos na enquete disseram que não há dinheiro para comprar máscaras e produtos de higiene necessários para o cumprimento das medidas de prevenção recomendadas pelas autoridades sanitárias.

A falta de informações confiáveis sobre a doença foi apontada como um problema por 17% dos líderes comunitários, que se queixam da disseminação de notícias falsas e da ausência de um discurso coerente das autoridades, resultado das disputas entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores.

"A confusão tem prejudicado a adesão às medidas tomadas para combater a doença", afirma Graziela Castello, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e uma das coordenadoras da enquete. "As pessoas têm dificuldade para compreender os riscos e as recomendações."

A procura de trabalho tem afastado as pessoas do isolamento social, aumentando o risco de contágio, dizem os pesquisadores. Na avaliação do grupo, é também um sinal da insuficiência das políticas implementadas pelo governo federal para atenuar a perda de renda e conter o desemprego na pandemia.

Trabalhadores de baixa renda e do setor informal têm direito a um auxílio emergencial de R$ 600 por três meses, mas muitos encontraram dificuldades para se cadastrar no aplicativo criado pela Caixa Econômica Federal para o programa, o que têm provocado filas e aglomerações nas agências do banco.

O aprofundamento da crise econômica tem alimentado pressões para que o benefício seja prorrogado pelo governo. Além do impacto imediato da crise sobre os trabalhadores, há sinais de que a recuperação da atividade econômica será lenta depois que as medidas de isolamento social forem relaxadas.

Questionados sobre os problemas que tendem a se agravar em suas comunidades nas próximas semanas, 56% dos líderes que participaram da enquete apontaram o aumento do número de infectados pelo coronavírus, 35% mencionaram a falta de adesão às medidas de prevenção e 22% citaram a fome.

O aumento da violência é uma preocupação para 19% dos líderes entrevistados. Eles temem não só furtos e roubos mas o aumento da violência doméstica, a ocorrência de saques e o acirramento de conflitos sociais. Para 13%, o impacto psicológico da pandemia também tende a se agravar.

Para os pesquisadores envolvidos com a enquete, que planejam continuar monitorando essas comunidades nas próximas semanas, esforços para coordenar melhor a distribuição de alimentos e ampliar a assistência à população dessas áreas contribuiriam para conter a propagação do vírus.

"Há nessas comunidades uma rede de organizações da sociedade civil com grande capilaridade, que poderiam ajudar os governos a viabilizar políticas mais eficazes", diz Castello. Os boletins produzidos pela Rede de Pesquisa Solidária estão disponíveis no endereço: http://redepesquisasolidaria.org.

DEPOIMENTOS

"Você dá uma cesta básica para uma pessoa que mora num barraco com 11 pessoas. Tem cesta que vem 5 kg de arroz. Onze pessoas, se comerem no almoço e na janta, não dá nem para dois dias, numa conta bem básica."

Líder comunitário do Campo Limpo, em São Paulo

"Domésticas, diaristas, cuidadoras de idosos e babás, essas mulheres estão sofrendo com a queda da renda. No início, até que algumas patroas pagaram, mas poucas. Isso tem feito com que essas mulheres voltem a trabalhar, circulem pela cidade e interajam com muitas pessoas."

Líder comunitário do Morro do Coroa, no Rio de Janeiro

"Muitas pessoas com queixas relacionadas ao desencontro nas informações que são repassadas, principalmente por conta dessa briga política. [...] Nosso presidente aí falando uma coisa, nosso governador falando outra, nosso prefeito também. Então fica essa briga política prejudicando um pouco o entendimento das pessoas."

Líder comunitário do Engenho do Meio, no Recife

"As pessoas continuam saindo para trabalhar, e isso não tem uma solução. [...] A gente tem que, naturalmente, correr até o centro ou regiões mais longe daqui da periferia para poder trabalhar, certo? [...] E eu não tenho sugestão nenhuma para dar para eles. 'Não vão trabalhar porque vocês vão pegar essa doença'. Como é que eu vou dizer isso sendo que, se eles não trabalharem, eles também não comem?"

Líder comunitário do Morro do Macaco, em Cotia (SP)