Um dos lados mais perversos da violência de gênero é a condição das pessoas que ficam. Além de irmãos, pais e amigos, muitas das mulheres que são vítimas de feminicídio também eram mães. Contudo, a invisibilidade já começa em números: não há uma estatística oficial no Paraná sobre quantas dessas mulheres deixaram órfãos. Em contrapartida, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que, em 2021, mais de 2,3 mil crianças e adolescentes perderam a mãe nesse tipo de crime.

“Doloroso. É difícil, dói ainda.” Vitória Beatriz Brito Brandão da Silva faz uma pausa e chora. “Ela era minha vida, minha amiga, nos momentos mais difíceis, ela estava do meu lado. Tudo que passei ela acompanhou, viu e estava ali para me proteger. Aí chega uma pessoa e tira ela do nada da gente. A gente fica sozinha. É uma dor para o resto da vida”. A jovem de 22 anos é filha de Elaine Cristina de Brito, assassinada pelo seu então companheiro Marcos Bisterso em 3 de fevereiro de 2019.

Imagem ilustrativa da imagem Filhos de vítimas de feminicídios sofrem com invisibilidade
| Foto: Acervo pessoal

Embora já fosse maior de idade quando o crime aconteceu, a sensação de Vitória é de desamparo: “eu ainda não sabia me virar, não sabia as consequências da vida. Para tudo, eu tinha ela”.

Na época do crime, havia a suspeita de que Elaine tivesse cometido suicídio. Ela estava morando com Bisterso havia uma semana. Contudo, como esclareceram as investigações policiais, o companheiro dela a estrangulou e adulterou a cena do crime para parecer que Elaine havia se enforcado. Em 17 março deste ano, o tribunal do júri de Londrina condenou Bisterso a uma pena de 19 anos de reclusão. A defesa recorreu da decisão do júri, mas o réu segue preso.

Isabeau Lobo
Isabeau Lobo | Foto: Acervo pessoal

“Esses órfãos passam por uma carga emocional muito pesada. E, quando não presenciam, vão saber pelo resto da vida que o pai ou o companheiro da mãe veio a cometer um ato desse. São vínculos que eram para ser de amor, de afeto e foram marcados pela violência”, pontua a advogada Isabeau Lobo, ativista na luta contra a violência de gênero. “Enquanto crianças e adolescentes, isso tira parte do direito deles à dignidade e a uma vida saudável”.

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| Foto: Acervo pessoal

IMPACTOS PSICOLÓGICOS

Além das violações a direitos, isso também impacta o desenvolvimento e o olhar que os filhos das vítimas desenvolvem sobre o que é violência. “Como essa criança vai entender o que é gênero no futuro? Ela vai entender que o homem teria o direito de agredir a mulher? Perder alguém para uma violência é traumatizante e tem impactos na saúde da própria criança ao longo da vida. Ela pode se revoltar com essa situação, não aceitar o que aconteceu, não conseguir lidar e nem conviver com isso ao longo da vida. E ela também pode naturalizar, que é o outro oposto”, analisa Alex Gallo, professor do curso de psicologia da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Alex Gallo
Alex Gallo | Foto: Acervo pessoal

Embora o júri tenha condenado Marcos Biterso a uma pena de mais de 19 anos, o sentimento da filha mais nova de Elaine não é de reparação. “A justiça teria que olhar mais para quem ficou, pela dor de quem vai sentir falta. Ter empatia pelos filhos da vítima. Porque, querendo ou não, eles dão a sentença, condenam, mas nada disso vai confortar o coração de nós, que somos filhos, que perdemos a mãe da forma como perdemos. Dói demais, até hoje. Lembrar de tudo, de cada sorriso, de cada conversa, de cada carinho, de cada bronca”.

Como pontua Lobo, ainda é muito presente a ideia de que “a vítima deixa de ser entendida enquanto um sujeito de direitos e passa a ser vista como um objeto”. Por isso, a advogada aponta que “o trato na justiça seria um pouco melhor a partir do momento que julgadores, membros do Judiciário, do Ministério Público e advogados tiverem um pouco mais de consciência de que estão lidando com uma vida". "Ela pode estar presente ou não, mas representa a memória e o afeto de alguém. No tribunal do júri eu vejo que toda a vida dessa pessoa é muito exposta e isso macula a imagem.”

BANCO DOS RÉUS

Feminicídios que marcaram a história de Londrina são tema da série "Banco dos Réus. O primeiro episódio, lançado quinta-feira (26) pela Folha de Londrina, alcançou em apenas 15 horas o 40º lugar na categoria crime e suspense do Spotify, um dos principais serviços de streaming de áudio do mercado. "Fúria e sangue no 12º andar" já alcançou também a avaliação cinco estrelas entre os ouvintes da plataforma. Ele conta a história a estudante Fernanda Estruzani, morta em casa, aos 22 anos, com 72 facadas, desferidas pelo ex-marido, Marcos Panissa, em 1989. Julgado e condenado, ele está foragido. O segundo episódio, "O Crime do Triplex", será lançado no dia 2 de junho.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Uma das possíveis razões para que os números de crianças órfãs por causa da violência de gênero sejam invisibilizados é o fato de serem primeiro atendidas por políticas públicas do Judiciário, e não do Poder Executivo. A secretária municipal de Assistência Social de Londrina, Jacqueline Micali, pontua que “essa criança, na maioria das vezes, sempre que pode, vai para a família extensa, para preservar seus laços familiares. Hoje em dia não temos nenhuma criança que está dentro do acolhimento porque a mãe foi vítima desse tipo de crime”.

Os órfãos das vítimas de violência são atendidos por outros órgãos da rede pública em momentos posteriores. “Por exemplo, essa criança pode mudar de cidade, pode mudar de bairro, então ela tem que ser acolhida na escola, no posto de saúde do bairro, no que nós chamamos de rede de apoio, para que, na medida do possível, e se for possível, essas cicatrizes sejam curadas e tratadas para que esse ciclo de violência não se perpetue”, pontua Micali. Para ela, “a violência se perpetua porque é cultural’.

Vitória hoje é mãe de dois filhos. Um de cinco anos, que era muito próximo a Elaine, e uma bebê, que não chegou a conhecer a avó. “Eu fico imaginando se eu tivesse morrido, se alguém tivesse me matado, meus filhos crescendo sem mim. A pior coisa que tem é uma pessoa crescer sem o carinho de uma mãe. Porque uma mãe faz tudo pelos filhos, e ela fazia pela gente”, conta.

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