Curitiba - Mudanças climáticas, desmatamento, aumento de zonas urbanas e avanço sobre áreas de proteção ambiental: os fatores que estão por trás da catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul também estão presentes no Paraná e já têm produzido efeitos. Desde o início do ano passado, foram registrados alagamentos em várias regiões do estado, do Norte Pioneiro ao Sul, do Oeste ao Litoral. O caso mais grave foi no Sul do estado, em outubro, quando pelo menos 18 mil pessoas foram afetadas pela cheia do Rio Iguaçu.

Segundo especialistas ouvidos pela FOLHA, o Paraná corre o risco de enfrentar um processo semelhante ao registrado no Rio Grande do Sul – se não em extensão, pelo menos com as mesmas características. Tanto que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, monitora constantemente 37 municípios do estado que têm áreas com risco de desastres ambientais como deslizamentos, enchentes e alagamentos.

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“Temos risco? Temos. Em todas as regiões do estado? Sim”, diz o engenheiro ambiental Helder Rafael Nocko, membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente. “O que aconteceu no Rio Grande do Sul pode acontecer no Paraná. Talvez não na mesma escala, atingindo quase o todo o estado, mas podem acontecer coisas de nível semelhante. No ano passado tivemos em União da Vitória uma cheia histórica do Rio Iguaçu, um rio que cruza o estado inteiro, nasce na Região Metropolitana de Curitiba e vai até Foz do Iguaçu”.

Altos índices de precipitação, somados à impermeabilidade do solo, podem levar rapidamente à cheia dos rios, explica Nocko. “Há uma maior impermeabilização dos solos nas cidades e até em áreas agrícolas com solos batidos. Essa água escorre e chega mais rapidamente aos rios. No Rio Grande do Sul, isso foi distribuído em uma grande área do estado. Foi um fenômeno em que teve uma grande afluência do que a gente chama de ‘rios voadores’: a umidade que veio pela atmosfera e ficou parada sobre o Rio Grande do Sul, então precipitou e trouxe muita água para o estado”.

Para o climatologista José Antonio Marengo, diretor do Cemaden, o momento exige que cidades e estados invistam em prevenção em vez de buscarem flexibilizar a legislação ambiental. “As flexibilizações nas regras do uso do solo podem gerar riscos, porque muitas vezes a flexibilização é para facilitar construções, e as cidades estão cada vez mais impermeabilizadas. Como aconteceu agora no Rio Grande do Sul, estruturas hidráulicas foram subdimensionadas”, diz Marengo. “É melhor investir em melhorar, atualizar e reforçar as estruturas hidráulicas de proteção contra enchentes. Essa flexibilização pode afetar essa capacidade de gerar resiliência para a cidade”.

PEDALADAS CLIMÁTICAS

Na prática, o que se observa é exatamente o contrário ao recomendado. Especialista em Direito Ambiental, a advogada Luciana Ricci Salomoni fez um estudo sobre os ataques à legislação ambiental entre janeiro de 2019 a agosto de 2022 no país. “Ficaram claros não só o desfazimento de normas ambientais, como um discurso de desqualificação de materiais produzidos por órgãos técnicos especializados. É um conjunto de irregularidades e de falta de clareza na divulgação dos dados pelas fontes oficiais.”

Para a especialista, a forma de agir do poder público brasileiro nos últimos anos tem sido permeada pela prática das “pedaladas climáticas”. O termo foi usado quando o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro alterou o método de cálculo de emissões para se adequar às obrigações do Acordo de Paris, mas na prática permitiu um aumento nas emissões dos gases do efeito estufa. Os dados foram corrigidos pelo governo brasileiro em setembro do ano passado, na Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas).

Um dos resultados dessa política pode ter sido o agravamento da crise no Rio Grande do Sul, diz a advogada. “O governador do Rio Grande do Sul alterou um grande número de normas socioambientais sem os procedimentos adequados, sem consultar a população e sem consultar a ciência climática. No apagar das luzes, eles passam a boiada.” Em apenas 75 dias de 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) e a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul eliminaram 480 pontos do Código Ambiental do estado.

No Paraná, diz Luciana Salomoni, medidas simples ainda não foram tomadas. “Com uma iniciativa como a tarifa zero, com um dia na semana sem tarifa de ônibus, há uma redução nas emissão de gases tóxicos. Outros protocolos precisam ser adaptados, como a arborização urbana”, afirma. “O governo do Paraná tem um Plano Estadual de Ação Climática, mas a primeira reunião do Comitê de Mudanças Climáticas foi em novembro de 2023. O governo ainda está engatinhando nesse sentido. Mesmo o plano nacional tem muitos termos amplos e que não são precisos.”

Para a advogada, o momento exige que o poder público tome decisões. “Tenho um pouco de cuidado para não provocar alarmes, que não funcionam bem para a saúde mental e dão margem para os negacionistas, mas 2023 foi o ano mais quente da história desde que a temperatura é verificada. Não nos cabe mais ficar tentando entender por que eles não fazem o que é necessário, cabe compreender como eles podem ser coagidos a fazer. Precisamos de uma ação clara, pautada em dados.”

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FALHA NA PREVENÇÃO

O Brasil evoluiu na detecção de riscos de desastres naturais e no monitoramento de áreas consideradas problemáticas, mas ainda falha nos planos para prevenir e mitigar os efeitos de catástrofes naturais. Criado em 2011, após o desastre ocorrido na região serrana do Rio de Janeiro, o Centro Nacional de Monitoramento de Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, atualmente monitora e emite alertas constantes sobre 1.133 municípios brasileiros. A outra ponta, no entanto, depende de planos estruturados pelos governos estaduais e pelas prefeituras.

“O Brasil ainda não tem esses planos previstos e bem estruturados. Tem algumas cidades mais avançadas, mas em termos gerais ainda estamos longe de dizer que as cidades do Brasil estão 100% preparadas. E agora os eventos extremos estão mais frequentes e mais intensos”, diz a engenheira cartográfica e doutora em Meteorologia Regina Alvalá, diretora do Cemaden, cuja sede fica em São José dos Campos (SP). “Conseguimos avançar muito em monitoramento, mas outros eixos ainda não estão bem implementados.”

Estados e municípios devem desenvolver planos de prevenção a desastres e de contingência, para o caso de eles ocorrerem. “Os planos de prevenção precisam contemplar se é preciso revegetar as matas ciliares dos rios que foram derrubadas, se é preciso revegetar os topos de morros, se são necessárias obras de estruturas de contenção de encostas. Tem uma série de ações que esses planos precisam estabelecer”, diz Regina Alvalá.

Já os planos de contingência têm como principal objetivo salvar vidas em caso de catástrofes naturais. “Eles precisam definir rotas de fuga, abrigos, como fazer a interlocução com a população. Precisam ter os abrigos pré-definidos, indicar para onde a população vai, o quão perto e o quão longe esses abrigos estão de onde elas residem, se vão a pé, se a rota é segura. Esses planos ainda precisam ser estruturados.” Para Regina Alvalá, a conscientização da população é parte fundamental desse processo.

Para o engenheiro ambiental Helder Rafael Nocko, estudos das bacias hidrográficas e de drenagem urbana são fundamentais. “Temos que monitorar a chuva e o nível dos rios. A drenagem urbana é uma questão de saneamento básico ainda pouco estudada, com poucos investimentos. E precisamos de ferramentas de mitigação. As cidades têm que passar a ser mais resilientes, com maior capacidade de resistir a esses fenômenos mais intensos, o que inclui estruturas de proteção nas cidades e a desocupação de áreas de risco. São dificuldades que precisam ser enfrentadas”.

A reportagem da FOLHA solicitou uma entrevista à Defesa Civil do Paraná, mas não houve retorno até o fechamento desta edição.

Maiores eventos climáticos registrados no Paraná desde o ano passado

Março de 2023 - Após uma chuva de 150 mm, Bandeirantes, no Norte Pioneiro, decreta situação de calamidade pública. Houve o transbordamento de uma barragem e a água atingiu o centro do município. Pelo menos 250 casas foram atingidas.

4 de outubro de 2023 - Um tornado atinge Cascavel, no Oeste, com ventos que chegaram a 250 km/h. Houve destelhamentos, quedas de árvores e interrupção no fornecimento de energia.

8 e 9 de outubro de 2023 - Cerca de 16 mil pessoas foram afetadas pelo temporal que atingiu o estado. Houve alagamentos e deslizamentos na BR-277 e estradas rurais foram destruídas. A região Sul foi a mais atingidas, principalmente as cidades de Rio Negro, Jaguariaíva e Irati foram algumas das cidades atingidas. Nos mesmos dias, Curitiba e Maringá também foram atingidas por temporais,

18 de outubro de 2023 - A enchente em União da Vitória (Sul) elevou o nível do Rio Iguaçu a 8,136 metros, maior que o recorde de 8,130 metros, registrado em 2014. Ao longo do mês, cerca de 18 mil pessoas foram afetadas, um terço da população da cidade. As cidades de Rio Negro e São Mateus do Sul também foram atingidas.

27 de outubro de 2023 - Chuva e granizo causaram estragos e alagamentos na região Sudoeste. Os municípios de Dois Vizinhos, Francisco Beltrão, Boa Esperança do Iguaçu e Marmeleiro, entre outros, tiveram estradas, destelhamentos, deslizamento de terras e quedas de árvores.

28 de outubro de 2023 - A forte chuva que caiu na região de Curitiba deixou parques alagados e provocou destruição no bairro Caximba, na região sul. Pelo menos 12 famílias tiveram que deixar suas casas. Localidades em Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana, ficaram alagadas. Em Nova Laranjeiras, cinco casas foram arrastadas pela correnteza.

24 de janeiro de 2024 - Dia de temporal mais forte em Matinhos, Guaratuba e outras cidades do Litoral, que foram atingidas durante todo o mês. Ruas ficaram alagadas e uma idosa teve que ser resgatada pelos bombeiros.

31 de janeiro de 2024 - Em pouco mais de uma hora, choveu cerca de 51 mm em Curitiba, o que afetou 75 bairros com ruas alagadas e quedas de árvores.

2 e 3 de maio de 2024 - A Região Oeste do Paraná foi atingida por um forte temporal, com mais de 100 mm de chuva em menos de 24 horas. Em Bela Vista do Caroba, perto da fronteira com a Argentina, um casal morreu ao ser arrastado pela água.

Cidades monitoradas pelo Cemaden no Paraná:

Almirante Tamandaré

Antonina

Apucarana

Borrazópolis

Cambará

Campina Grande do Sul

Campo Largo

Campo Magro

Cantagalo

Capitão Leônidas Marques

Cerro Azul

Céu Azul

Colombo

Curitiba

Fazenda Rio Grande

Foz do Iguaçu

Francisco Beltrão

General Carneiro

Guaraniaçu

Itaperuçu

Ivaté

Jaguapitã

Jaguariaíva

Morretes

Paranaguá

Pato Branco

Pinhais

Piraquara

Querência do Norte

Rio Branco do Sul

Rio Negro

São José dos Pinhais

São Mateus do Sul

São Miguel do Iguaçu

Tuneiras do Oeste

Umuarama

União da Vitória