SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em um espaço de semanas, o governo estadual de São Paulo anuncia uma reabertura, sobe o tom para "lockdown" e depois reformula o afrouxamento da nova quarentena.

O sul do país relaxa restrições e o Nordeste adota isolamento mais rígido. Uruguai e Paraguai destoam da América Latina, novo epicentro do coronavírus. Os Estados Unidos registram mais de 100 mil mortes por coronavírus. Cidades europeias liberam praias. A China tenta evitar a segunda onda de contágio.

Entre a esperança da volta do comércio, o medo de um isolamento maior e a expectativa da nomeação do terceiro ministro da Saúde, não é simples escolher como agir.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, a falta de coerência no discurso dos líderes pode resultar em um cenário em que cada um decida, individualmente, o que fazer quiser diante das restrições impostas pelos governos em reação à pandemia.

"O isolamento, na nossa cultura, é, em princípio, um sinônimo de punição. A gente isola o criminoso, a gente fala para as crianças 'vai pensar lá no quarto'. Retirar alguém do contexto natural de relações sociais tem conotação de punição", afirma Christian Dunker, psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo (USP). Acatamos, mas é incômodo.

Apesar das restrições irem na contramão de uma liberdade de escolha, é possível que uma imposição como o "lockdown" não se torne uma violência para quem a recebe. Segundo Paulo Endo, psicanalista e professor livre-docente da USP, o ponto fundamental para a efetividade do discurso é sua coerência e intenção sincera.

Um dos exemplos de um discurso que perdeu a coerência é o do governo do estado de São Paulo, que anunciou o relaxamento da quarentena na última quarta-feira (27).

Segundo Endo, João Doria (PSDB) entrou em contradição e "a base científica que ele defendia foi por terra" quando afrouxou restrições ainda no pico da crise. Ele vê na atitude do tucano proximidade com as do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que tem se posicionado contra medidas de isolamento social.

Para a psicanálise, explica Pedro Ambra, psicanalista e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o discurso ganha significado de acordo com suas reverberações e ruídos --não há linha direta entre o que é dito e quem ouve e, neste caminho, a fala é transformada conforme os princípios de quem a recebe.

"Está menos em jogo o que a autoridade está dizendo e sim o que eu suponho que é o interesse dela por trás", afirma.

Concorda Endo, que afirma que a "sinceridade é um elemento psíquico vital em um momento que cada um olha para o próprio umbigo".

O que se vê é uma enorme variedade de discursos, desde os com base científica aos que defendem remédios sem comprovação médica ou negam a existência do vírus.

O resultado disso, defende Endo, é uma desconfiança absoluta no que o governo propõe, e é nesse momento que cada um decide o que fazer de acordo com suas avaliações particulares.

"Se cada um diz uma coisa, por que eu não posso dizer a minha também?", afirma Dunker. Para ele, há instabilização permanente dos discursos, o que contribui para que o isolamento seja desobedecido.

No Brasil, enquanto governadores tentavam aumentar as taxas de isolamento em seus estados, o governo federal aumentava a lista de serviços que podem funcionar.

Enquanto o Ministério da Saúde ampliava o uso da cloroquina também para tratamento de casos leves, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertava para sua falta de eficácia. Dois ministros da Saúde já deixaram o cargo por discordâncias com o presidente a respeito das políticas de combate ao coronavírus.

"O negacionismo que já estava aí foi dirigido ao vírus. Primeiro diz que ele não vai pegar a gente, que ele não existe. Segundo, nos agrupamos para negar essa existência. Terceiro, atribuímos a existência do vírus a intencionalidades políticas. Isso é a instrumentalização do medo e da angústia das pessoa", afirma Dunker.

O cenário criado é de uma série de discursos e anúncios dissonantes. "Quando uma autoridade dá voz a esse desejo inconfesso, como 'estamos pensando em afrouxar a quarentena', para muitos isso vai ser recebido como confirmação direta do desejo de fazer o que se quer", afirma Ambra.

É o que se viu quando Doria tentou reabrir a economia paulista pela primeira vez, em abril: foi obrigado a recuar ao ver a situação do estado piorar após a divulgação inicial.

Paula Perón, professora da psicologia da PUC-SP, explica que não há uma fórmula certa para comunicar medidas à população, mas manter a constância na comunicação é fundamental para a compreensão ser efetiva, além de usar uma linguagem acessível.

"Se estava muito difícil aceitar [a quarentena], provavelmente você vai antecipar o afrouxamento [com o anúncio], era a gota d'água que vocês estava esperando. Se você estava com muito medo, provavelmente o efeito vai ser o oposto, de temer o afrouxamento", diz.

Dunker explica que ver a esperança no horizonte pode fazer com que se fique ansioso para sua chegada e também que se ganhe fôlego para suportar as restrições um pouco mais.

"É a diferença entre anunciar a abertura potencial e o fechamento potencial. A gente tende a antecipar, o discurso é uma rede de antecipação. Se dizem 'vai vir o lockdown', dá mais seriedade quando você fala, aumenta o medo, cria o entendimento, um cenário é pessimista", prossegue.

O protagonismo dos palanques como o Palácio dos Bandeirantes ou a entrada do Alvorada ilustram ainda outro lado do problema.

Nesse processo de comunicação das medidas para combater a pandemia, esferas governamentais perderam a oportunidade de criar canal com a sociedade civil, diz Dunker, sobretudo em lugares que enfrentam maior dificuldade para cumprir restrições e que são historicamente deixados à margem (como moradores de rua ou de favelas).

Um dos desdobramentos do cenário é a organização da própria sociedade civil, já que a resposta das instituições não vem a tempo, diz Endo.