Doar é um ato de amor ao próximo, seja na forma de alimento, carinho ou de uma parte de você. Falar sobre a doação de órgãos ainda é tabu entre muitas famílias, já que muitos relacionam o ato de pensar na doação com a morte de uma pessoa próxima. Entretanto, mais do que falar de morte, falar sobre a doação de órgãos é falar sobre vida. Há sete anos, Adriele Bueno Souza foi diagnosticada com uma doença rara que já tinha tirado a vida de sua irmã e de sua prima. Receber o diagnóstico foi como receber uma sentença de morte, mas a decisão de uma família de dizer "sim" à doação de órgãos permitiu que a vida continuasse nela por meio de um transplante de pulmão.

Nesta quarta-feira (27) é celebrado o Dia Nacional da Doação de Órgãos, que busca conscientizar a população. Nascida em Barueri (SP), Adriele Bueno Souza, 37, veio para Londrina com 2 anos de idade e se considera uma "pé-vermelho". Vivendo no sítio, a jovem tinha uma vida comum a qualquer pessoa, trabalhava, saia para passear. Entretanto, quando ela tinha 22 anos, sua irmã mais velha começou a sentir muito cansaço, dores nos braços e pernas e inchaço nos dedos. Após idas e vindas ao médico, ninguém sabia o que a jovem tinha e o tempo ia passando. Três anos após o início dos sintomas e já muito debilitada é que veio o diagnóstico de hipertensão arterial pulmonar.

Sem entender muito bem do que se tratava, a família viu a jovem ficar oito meses internada passando por tratamentos paliativos. Por conta da demora no diagnóstico, a doença, que atinge o pulmão, também já tinha prejudicado o coração. O transplante de órgãos foi cogitado, mas como seria necessário um duplo, de pulmão e coração, o que não era feito no país na época, foi descartada a possibilidade. A jovem morreu em maio de 2009.

Adriele conta que o momento foi muito difícil para a família, que em 2014 sofreu um novo abalo: sua prima-irmã também recebeu o diagnóstico de hipertensão arterial pulmonar. A prima chegou a iniciar um tratamento no InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, mas com o fígado já prejudicado por conta da medicação, a jovem de 29 anos morreu pouco tempo depois. O transplante não foi cogitado porque o procedimento estava suspenso no Brasil na época para a hipertensão arterial pulmonar porque os médicos não estavam tendo êxito.

A hipertensão arterial pulmonar é uma doença que faz com que as paredes das artérias pulmonares comecem a engrossar, o que dificulta a passagem do sangue e, consequentemente, de oxigênio. Sendo uma doença progressiva, ela também sobrecarrega o coração. “Parece que eu estava em uma bolha e eu não tinha noção de que poderia acontecer comigo ou com outra pessoa da família, mesmo com os médicos falando que eu, meu irmão e meus primos tínhamos que fazer exames periódicos”, conta.

Adriele começou a se sentir cansada. Trabalhando na região central de Londrina, na hora do almoço saia para passear, mas precisava fazer várias pausas durante o trajeto. “Na minha cabeça eu estava sedentária”, admite. Sem desconfiar de nada, começou a fazer academia. Certo dia, ao sentir uma dor no braço, foi se alongar e desmaiou.

Depois do incidente, Adriele parou de fazer academia, mas não procurou ajuda médica porque se sentia bem quando não estava fazendo esforço. Passado mais de um ano, ela estava em consulta com o médico por outras questões de saúde, mas resolveu pedir para repetir o ecocardiograma “por desencargo de consciência”. Durante o procedimento - que demorou mais do que o esperado - ela contou para o médico sobre a doença que vitimou a irmã e a prima. “Ele me olhou e falou: você também tem hipertensão arterial pulmonar. Naquele momento a minha vida parou. É um sentimento de desespero e de impacto. A minha esperança era que o médico tivesse errado o laudo e o meu pneumologista falasse que não era nada daquilo. Esse era o meu fiozinho de esperança”, conta.

Ao entregar o laudo para o profissional que a acompanhava, ele pediu para que o exame fosse repetido, o que confirmou o diagnóstico. “Foi muito difícil porque era como se a história da minha irmã e da minha prima estivesse recomeçando e a gente já sabia como seria o final”, diz. Em abril de 2016, aos 30 anos, ela teve a confirmação do diagnóstico de hipertensão arterial pulmonar.

Segundo ela, uma frase dita pelo médico a impactou de forma terrível: “Ele falou que eu ia ter uma sobrevida. Eu tinha acabado de fazer 30 anos, tinha uma vida ativa, eu queria uma vida plena, não uma sobrevida. Eu via um filme passando e o final era algo que eu já tinha visto antes. No primeiro momento, foi uma sentença de morte”, desabafa.

Com um encaminhamento para o InCor em mãos, o começo foi bem difícil. Adriele já não conseguia nem tomar banho sozinha por conta dos inchaços e a comida tinha que ser batida no liquidificador. Após 21 dias internada no Incor, ela saiu do hospital precisando utilizar oxigênio 24 horas por dia, além de ter um pedido de encaminhamento para ser avaliada pela equipe de transplante.

Com tudo ainda muito recente, Adriele Bueno Souza entrou na lista para o transplante de pulmão no dia 14 de junho de 2017. Teve que se mudar para São Paulo. Os dois anos e meio de espera foram de muita expectativa e de muito medo, com altos e baixos.

No dia 26 de outubro de 2019, ela recebeu a ligação do InCor avisando que eles poderiam ter uma pulmão para ela. Percorrendo um trajeto de uma hora e meia em menos de 30 minutos, ela estava na porta do centro cirúrgico quando a equipe médica avisou que o órgão estava com infecção, o que inviabilizaria o transplante. “Foi um dos piores dias da minha vida”, afirma.

Então, no dia 5 de dezembro de 2019, às 2h30 da madrugada, ela recebeu a ligação que mudaria tudo. A equipe disse que ela tinha que estar no hospital às 6 horas. Com medo de uma nova decepção, a notícia que ela tanto aguardava chegou: ela ia receber um novo pulmão. “A partir daí eu não lembro de mais nada”, adianta.

Em um procedimento que durou nove horas, nos primeiros dias, o tórax de Adriele ficou aberto e conectado a uma máquina chamada de ECMO (Oxigenação por Membrana Extra Corporal), que faz a função do coração e do pulmão. Com a extubação e a diminuição dos sedativos, ela acordou no 14ª dia após a cirurgia. “No 15° dia eu já queria comer tudo o que eu via pela frente”, lembra aos risos.

No dia 23 de dezembro, ela foi transferida da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) para a enfermaria. A alta veio no dia 7 de janeiro de 2020, após 32 dias internada, em um tempo considerado recorde.

Quatro dias antes de completar três anos desde que tinha saído de Londrina, Souza voltou para casa. Junto de sua fé e resiliência, ela afirma que o que salvou a sua vida foi a doação. A única informação que ela pôde receber sobre o doador foi a de que ele era um homem de 21 anos e que a captação do órgão foi feita em Guarulhos (SP).

“O maior e melhor sentimento depois de tudo isso é o da gratidão. Esse sentimento é transformador e flui em todos os momentos da minha vida. É gratidão por saber que uma família que perdeu um filho de 21 anos escolheu me devolver a vida”, conta emocionada.

Apesar de seguir com alguns cuidados, principalmente em relação a medicação, Adriele está ótima e pode dizer com orgulho que tem um vida e não uma sobrevida.

Atualmente, ela faz palestras e conta sua história de superação. “Falar sobre a doação de órgãos não é falar sobre morte, mas sobre vida e amor ao próximo. A doação de órgãos salva vidas e eu só estou aqui hoje porque alguém disse ‘sim’”, celebra.