No catolicismo existe a celebração jubilar, que é feita de 25 em 25 anos. Ela tem origem no antigo Yovel, dos judeus, que entre outras coisas previa a devolução de todos os campos aos seus proprietários originais.

No ano que vem os ex-moradores de Ilha Grande, na Região Noroeste do Paraná, vão completar 25 anos de expulsão de suas casas, mas a perspectiva de receberem suas propriedades de volta ou de serem indenizados é mínima. Das 3 mil famílias atingidas, 1.200 pessoas possuíam títulos e estavam associadas à Apig (Associação dos Ilhéus dos Atingidos pelo Parque Nacional de Ilha Grande), mas 120 delas já morreram sem terem sido ressarcidas quando da criação do parque. A estimativa é de Misael Jéferson Nobre, presidente da entidade.

Parque fica entre o Paraná e Mato Grosso do Sul e abriga mais de 300 ilhas e ilhotas
Parque fica entre o Paraná e Mato Grosso do Sul e abriga mais de 300 ilhas e ilhotas | Foto: Acervo/Parna de Ilha Grande/ICMBio

A situação perdura há vários anos e passou por diversos governos. "Essa promessa de indenização foi feita em várias reuniões com o pessoal do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). No final fizeram uma portaria em que se podia utilizar as áreas lá de dentro da Ilha Grande como reserva legal como compensação, mas foi cancelado depois. Era uma forma de indenização, mas foi cancelada. Eu mesmo não acredito mais nessa indenização”, afirmou Nobre.

“Com certeza, mais de 120 pessoas faleceram esperando essa indenização. Os descendentes não estão por dentro de todos os trâmites dessa briga e nem estão indo atrás disso.” Ele ressaltou que em 1986, muitos acabaram não registrando o título de propriedade, porque teve a questão de ter quitado a última parcela ou não. “Então muitos títulos acabaram sendo cancelados e se estabeleceu um grande número de posseiros em cima daquelas propriedades. Precisaria fazer essa regularização fundiária dessas terras para que essas famílias recebessem a indenização.”

Segundo ele, pelo fato de a indenização não ter sido paga, muitos estão retornando ao entorno da Ilha Grande. “De nosso conhecimento não tem ninguém lidando com gado e nem mexendo com maquinário. Todos estão retornando de forma orientada a não desmatar áreas e, se forem construir casas, que façam em área que possui capim e não derrubem árvores, respeitando a área de preservação permanente, que é 30 metros. A gente tem feito uma orientação para que não cometam nenhuma infração ambiental.”

A reportagem fez contato com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, mas não obteve resposta ao pedido de entrevista até o fechamento desta edição.

MORTE POR DESGOSTO

O agricultor Heleno de Matos, 53 anos, é filho de José Raí Ferreira de Matos, ilhéu que tinha título de propriedade em Ilha Grande e morreu sem receber indenização. Ele conta que irmãs dele tiveram que se prostituir para sobreviver porque não tinham mais terra para cultivar. “Meu pai morreu de ataque cardíaco, de desgosto por não conseguir voltar para Ilha Grande. A minha mãe morreu em uma Belina na beira do Rio, porque queria voltar para lá. Eles tentaram voltar algumas vezes e quando cultivavam arroz, quando o arroz estava para amadurar, o IAP (atual IAT, Instituto Água e Terra) ia para lá e acabava com a lavoura,”, diz Heleno, que mora em Querência do Norte.

“A gente morava perto do Porto Santo Antônio. Meu pai não conseguiu a indenização e morreu pagando imposto da propriedade. Sofremos bastante. Perdi a minha mãe e perdi meu pai. Minha mãe morreu dentro de uma Belina na beira do rio de tanto que ela gostava do rio, mas o Ibama não deixava nós voltarmos de jeito nenhum. A gente montava o barraco e depois de uma semana quebravam ele todo. Atiravam nossas coisas fora.”

“Perdemos muito dinheiro nesse intervalo, mas mais do que o dinheiro, nós perdemos nossa saúde. Meus pais perderam a vida. Se essa indenização tivesse sido liberada antes, eu ainda os teria. Minha mãe não teria morrido. Meu pai também. E não tem dinheiro que pague isso”, destaca.

Ele relata que atualmente não está correndo atrás da indenização, porque seu pai morreu sem receber nada. “Hoje minha alma se perdeu. Eu perdi tudo o que tinha. Minha família, minha mãe. Hoje estou na tristeza.”

TORMENTO

Quando o então vice-presidente Marco Maciel ocupou interinamente a Presidência da República, assinou o decreto criando o Parque Nacional de Ilha Grande, no dia 30 de setembro de 1997. A medida causou tormento aos moradores do arquipélago fluvial, já que a maioria das 3 mil famílias que moravam na área não recebeu um centavo de indenização quando foi obrigada a sair do local.

Há no parque entre o Paraná e Mato Grosso do Sul mais de 300 ilhas e ilhotas ao longo de 150 quilômetros do Rio Paraná. A área abriga mais de 80 espécies ameaçadas de extinção. O objetivo da medida era preservar as riquezas naturais do chamado “Pantanal Paranaense”, uma vez que é o último trecho livre de represamento do rio Paraná e possui lagos, lagoas e várzea continental em sua área de preservação permanente.

O decreto de criação do chamado Corredor de Biodiversidade do Rio Paraná, no entanto, não levou em conta como os ribeirinhos e ilhéus iriam conseguir sustento sem a área cultivável e sem a pesca.

O pesadelo dos moradores do local, no entanto, começou anos antes, com a inauguração da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1982. A abertura das comportas de barragens do Estado de São Paulo provocava constantes cheias, que obrigavam os moradores a sair do local.

Uma das primeiras vítimas dessa abertura das comportas foi Anésio dos Santos Lauton, que morava em Ilha Grande e morreu no início da década de 1980. O filho dele, Guilherme Vitorino dos Santos, 48, recorda que ainda era uma criança quando tudo aconteceu. “Todo mundo dali só sabia viver na ilha. Plantava, colhia, criava galinha, porco, colhia banana. Tínhamos tudo o que imaginávamos e não comprávamos quase nada na cidade. Nossa vida era na ilha”, ressalta. Anésio Lauton não resistiu ao estresse por conta da perda das terras e morreu anos depois.

Depois das enchentes, os ilhéus retornaram às suas moradias. No entanto, o decreto de criação do parque alterou drasticamente as vidas deles. “Em 1997 começou a conversa de que o governo iria tirar todo mundo. Mas nós continuamos morando lá. Não acreditávamos nessa história. Só que em 2002 começaram a expulsar as pessoas das ilhas. Indenizaram poucas pessoas, algumas mulheres, mas foi pouquíssimo. A maioria jamais recebeu indenização”, lamenta.

Como não foi indenizado, Guilherme reivindica o direito de retornar ao local onde vivia antes da criação do parque. “Já que não nos pagaram nada, temos esse direito”, argumenta. “Depois do decreto de 1997, perdi a minha família. Como não podia voltar, fui para São Paulo e fiquei trabalhando em uma usina de cana. Minha história é muito sofrida”, recorda-se.

Como Guilherme ficava muito tempo fora de casa, a esposa dele resolveu deixá-lo e levou os filhos do casal. “Quando eu saía para trabalhar, não tinha como ficar junto da minha família.” Na disputa judicial pela guarda das crianças, ele acabou perdendo. “Eu fiquei perdido. Depois disso ainda voltei lá e montei um barraco no meio do mato de Ilha Grande, para ninguém ver. Como estava proibido, quem voltava era multado. Fui até autuado. Chegou um pessoal armado e falou que estava proibido morar ali”, diz.

“Tenho direito à minha ilha, porque já estou cadastrado como ilhéu pertencente a uma comunidade tradicional. Minha ilha está cadastrada na Receita Federal. Era o que estava faltando. Ninguém no Paraná tem direito de retirar a minha ilha. A ilha não tem preço. Ninguém no mundo pode pagar. Eu vou mexer com agricultura sintrópica [livre de defensivos químicos] e agrofloresta. Em qualquer APA [Área de Proteção Ambiental] do mundo pode isso. Quero que ela seja modelo e que todos os ilhéus do Paraná mexam com isso, porque eu não quero destruir a natureza”, acrescenta.