BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Médicos, pacientes e secretarias de saúde apontam baixos estoques e até falta em parte da rede de um medicamento usado para tratamento de um tipo específico de câncer de mama, o qual afeta até 10 mil pacientes no SUS.

Chamado de trastuzumabe, esse medicamento é um anticorpo monoclonal usado em pacientes com câncer de mama HER2 positivo, tipo que corresponde a cerca de 20% dos casos de câncer de mama registrados.

Embora agressivo, esse tipo de câncer pode ser curável em etapas iniciais ou controlável com o uso do medicamento. Sem ele, porém, há risco de avanço da doença.

O envio irregular da droga pelo Ministério da Saúde tem preocupado secretarias estaduais de Saúde, enquanto pacientes e médicos já citam desabastecimento em algumas unidades de oncologia.

A reportagem consultou os estados sobre os estoques. De 14 que enviaram respostas, 10 informaram ter recebido quantidade do remédio abaixo da necessária para os meses de julho a setembro, o que baixa os estoques.

Em alguns estados, o atraso na entrega já deixa parte das unidades oncológicas sem o medicamento, usado por meio de aplicação intravenosa --caso de São Paulo e Bahia, por exemplo, segundo informações recebidas pela reportagem.

A situação tem gerado alerta em organizações que representam pacientes.

A estimativa é que 10.570 pessoas usem o trastuzumabe no SUS, segundo o ministério. Só em São Paulo, por exemplo, há 2.350 cadastrados.

Uma delas é Mislene Santana, 40, que faz tratamento com trastuzumabe há três anos como paliativo a um câncer de mama metastático. Ela conta que, no último dia 1º, chegou a ir ao hospital onde faz acompanhamento, mas ouviu que a unidade estava sem a droga.

No caso dela, diz, o tratamento é feito com intervalos de 21 a 28 dias, em média. Desde a última aplicação, no entanto, já se passou um mês e 13 dias --e ainda não há previsão.

"Estou desesperada. Liguei para todo mundo que podia, e o hospital está na batalha junto, mas o remédio ainda não veio", afirma ela, que procurou o Instituto Oncoguia, que dá apoio a pacientes, para informar sobre o desabastecimento. "É angustiante. Tive de ir ao médico pedir um remédio para conseguir dormir."

Desde que o trastuzumabe foi incorporado ao SUS, em 2012, a compra é feita pelo Ministério da Saúde, que o repassa aos estados. De lá, é distribuído para unidades que atendem pacientes com câncer.

A oferta do remédio, a princípio voltada a pacientes com câncer de mama inicial e avançado, foi ampliada em 2018 para casos de câncer de mama metastático.

Segundo a médica mastologista Maira Caleffi, presidente da Femama (Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama), a situação se agrava por ser uma droga sem substitutos no SUS.

Em casos iniciais, é a única disponível. Nos casos de câncer metastático, é associado ao pertuzumabe, ainda em fase de inclusão.

"É uma droga alvo para uma doença específica [câncer de mama HER2 positivo] e só ela pode combater e ser usada para esse tipo de célula de câncer. Mas não sabemos até que ponto as pessoas que decidem dentro do governo sabem disso", afirma.

"Se atrasa um mês ou dois, o impacto já é dramático", diz o oncologista Max Mano, membro do comitê de câncer de mama da Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), para quem a situação traz risco de piora dos quadros.

"É um medicamento usado com a quimioterapia ou após a cirurgia e que tem impacto brutal na redução da taxa de recorrência da doença em caso inicial", diz. "No outro extremo, para pacientes com metástase, ele aumenta a sobrevida."

Mano lembra que, apesar de ser ainda de custo alto, já há um número maior de empresas que fabricam a droga.

Questionado sobre os motivos do atraso na oferta, o Ministério da Saúde disse que o abastecimento "sofreu intercorrências diante do panorama mundial da pandemia".

Segundo a pasta, foram enviados 23 mil frascos para serem repartidos entre todos os estados em agosto. Esse valor corresponderia a 76% da demanda mensal, estimada, segundo a pasta, em 30 mil frascos.

O ministério, porém, não respondeu qual o tamanho da demanda represada.

Secretarias de Saúde ouvidas pela reportagem apontam que o valor enviado ainda é insuficiente e não atende ao necessário para o trimestre, calculado de julho a setembro, e cujo planejamento é iniciado em maio.

Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo diz que o envio do remédio tem ocorrido de forma irregular pelo governo federal, "impactando na distribuição e assistência aos pacientes".

De 17 mil frascos solicitados para o trimestre, 5.000 foram entregues no início de agosto. A pasta diz ter feito nova cobrança ao ministério na sexta-feira (11). Até lá, diz organizar medidas de remanejamento entre unidades para diminuir o impacto a pacientes.

Na Bahia, o quantitativo foi de apenas 17% do esperado. "Já estamos com desabastecimento do medicamento para unidades de oncologia", informa em nota a pasta estadual.

Também com só 18% do necessário recebido, a Secretaria de Saúde de Pernambuco diz ter feito uma compra emergencial para atender os pacientes até que o fornecimento seja regularizado.

No Pará, de 1.613 frascos esperados para uso entre julho e setembro, foram recebidos só 22, o equivalente a 1,4%.

Outros estados que relatam ter recebido menos doses foram Paraná, Goiás, Tocantins, Ceará, Espírito Santo e Minas Gerais. Já Amazonas, Maranhão, Rio de Janeiro e o Distrito Federal dizem ter estoques regulares.

Ainda segundo as secretarias, parte da entrega em agosto se deu para um medicamento biossimilar, diferente do usado antes, o que exige que o Ministério da Saúde envie novas orientações para adaptação do tratamento. Essas orientações, no entanto, ainda não foram disponibilizadas.

Questionado novamente pela reportagem nesta segunda-feira (14), o Ministério da Saúde informou que planeja iniciar a entrega, nesta semana, de mais 29 mil unidades do trastuzumabe.

Mais uma vez, no entanto, a pasta não informou o volume em atraso --só em Minas Gerais, por exemplo, a secretaria estadual diz que havia necessidade 15.361 unidades para julho a setembro ainda não entregues.

Em nota, o ministério disse ainda ter duas compras em andamento "para complementar o atendimento da demanda do trimestre".

Questionada sobre a previsão de envio de orientações para uso do medicamento biossimilar, o ministério também não respondeu.

Organizações que acompanham pacientes questionam a demora da pasta em adotar medidas para evitar desabastecimento.

"É um tipo de tratamento que não pode ser interrompido. O ministério é responsável pela aquisição e não consegue entregar uma demanda que já era previsível", diz Tiago Mattos, do Instituto Oncoguia.