Estado reconhece dívida histórica com os povos indígenas
Data comemorativa é marcada por conscientização e por mobilização para manter direitos conquistados ao longo das últimas décadas
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sábado, 20 de abril de 2024
Data comemorativa é marcada por conscientização e por mobilização para manter direitos conquistados ao longo das últimas décadas
Simoni Saris - Grupo Folha
“São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.” É assim que a Constituição Federal de 1988
trata a questão indígena no Brasil. Além do artigo 231, os direitos dos povos
originários também são reconhecidos nos artigos 210 e 232 e em outros
dispositivos legais em vigor no país. Na prática, no entanto, o que se vê é uma
população em luta constante pela preservação de suas áreas legalmente
demarcadas, muitas vezes, em situação de extrema vulnerabilidade, e que tenta a
todo custo manter vivas sua tradição, sua cultura e sua memória.
Em 19 de abril, data em que se comemora o Dia dos Povos
Indígenas no Brasil, falar sobre essa população não é apenas ressaltar a sua
enorme herança histórica e sua relevância na formação do país enquanto nação,
mas principalmente é falar sobre resistência.
Os livros de História costumam destacar a carta de Pero Vaz
de Caminha, retratando os indígenas como figuras exóticas que habitavam as
terras recém-descobertas, e a catequização dos índios pelos jesuítas no período
colonial. Mas antes do Brasil da coroa, existia o Brasil do cocar. Há mais de
cinco séculos, quando as caravelas portuguesas aportaram aqui, estima-se que havia
dez milhões de indígenas. Com o início do processo de colonização, iniciou-se
também a luta pela sobrevivência dos povos indígenas. Além das doenças trazidas
e disseminadas pelos europeus, a população originária foi explorada
economicamente, escravizada e dizimada.
A partir das primeiras disputas por territórios, o que se
sucedeu foi um etnocídio e cenas que se tornaram corriqueiras na atualidade,
como indígenas pedindo esmolas nas grandes cidades ou entrando em combates com agricultores
e garimpeiros pela preservação de suas reservas, são a comprovação de que a
despeito das leis e garantias constitucionais, a sociedade vem falhando na
proteção dessa população.
Como esquecer das imagens que rodaram o mundo em 2023, de
índios ianomâmis morrendo à míngua dentro de uma reserva no meio da selva
amazônica, vítimas da desnutrição, da febre amarela, da intoxicação pelo
mercúrio utilizado nos garimpos ilegais e, sobretudo, do descaso do poder
público?
Atualmente, há 1.693.535 indígenas vivendo no Brasil,
segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
número que corresponde a menos de 1% dos habitantes do país. E a população vem
crescendo. Na contagem anterior, realizada em 2010, eram 896.917, o que aponta
uma variação positiva de 88,81% em 12 anos. Mas o desenvolvimento de políticas
públicas voltadas a essa parcela dos brasileiros não acompanha o crescimento
populacional. Historicamente, a questão indígena no país tem sido marcada por
alguns avanços em meio a inúmeros retrocessos.
No Paraná, vivem basicamente três etnias: os guaranis, os kaingangs
e os xetás. Com 30.460 indígenas em seu território, segundo o último Censo, o Estado
tem uma dívida histórica com essa população. Com o apoio do governo, foram
cometidas atrocidades que praticamente levaram à extinção os integrantes da
etnia xetá. Além de reduzir consideravelmente as
demarcações indígenas em todo o território paranaense e transformar as áreas em
terras devolutas, políticas da metade do século passado oficializaram o extermínio ao contratar com
dinheiro público os chamados “bugreiros”, pessoas que tinham a incumbência de
assassinar indígenas, vistos como entraves aos interesses de empresários e
fazendeiros.
“Os bugreiros eram pagos pelo Estado e pelos fazendeiros que
se interessavam na Marcha para o Oeste. Os xetás foram retirados com caminhões
e não se sabe para onde foram levados. Alguns que não aceitaram ser
transportados foram deixados na área, onde foi deixada também comida envenenada”,
relembrou o procurador de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto.
O procurador integrou a Comissão Estadual da Verdade do
Estado do Paraná, instituída pela Lei 17.362/2012 no âmbito da Secretaria de
Estado da Justiça para examinar e esclarecer as graves violações de direitos
humanos praticadas no Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de
1988. Na comissão, Sotto Maior coordenou o Grupo de Trabalho que tratou das
violações sofridas pelos povos indígenas. “O registro é que temos, sem dúvida
nenhuma, uma grande dívida histórica em relação aos povos indígenas, que foram
vítimas de genocídio e expropriação de suas terras”, disse. “Um ponto muito
importante nessa perspectiva da reparação às vítimas é a proposta de resgate da
memória, da verdade e da Justiça e a responsabilização dos violadores. Temos
esse ponto a avançar, que é a reparação.”
Mais recentemente, o MP-PR (Ministério Público do Paraná)
criou o Nupin (Núcleo de Proteção aos Direitos dos Povos Indígenas) e interveio
para que fosse instituído no Paraná o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, apontado
pelo procurador como um grande avanço por representar um espaço no qual serão
traçadas as políticas públicas para atendimento aos povos indígenas. Uma das
atribuições do conselho também será a de impulsionar o Estado a cumprir o seu
papel constitucional e indelegável de garantir os direitos e a proteção dos
indígenas.
“Agora mesmo, há um grande movimento no Estado para
recuperação do povo xetá. E este caso é bem emblemático para demonstrar o
quanto é equivocada a chamada tese do Marco Temporal”, ressaltou o procurador.
Em setembro de 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou
inconstitucional a tese do Marco Temporal, defendida por ruralistas, e que
sustenta que os indígenas só teriam direito às terras que estivessem tradicionalmente
ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição
Federal. “(O Marco Temporal) É absurdo porque os xetás, que foram praticamente
dizimados, foram vítimas de extermínio, não teriam direito à terra porque não
estavam lá em 1988”, avaliou Sotto Maior.
Entre tantos atrasos no andamento das causas indígenas, o
Marco Temporal surge como mais um obstáculo, na visão do procurador. “Temos um
problema sério com os guaranis do Oeste do Paraná, que se encontram desde a
construção (da Usina Hidrelétrica) de Itaipu, esperando pela demarcação das
terras. Esse tema precisa ser solucionado. O Ministério Público tem o dever
institucional, em defesa do regime democrático de direito, de intervir,
especialmente em favor daqueles que estão afastados da possibilidade do
exercício dos direitos fundamentais.”
Funai trabalha para garantir direitos básicos
Com certa frequência se ouve falar das pessoas socialmente
invisíveis. O conceito da invisibilidade social se aplica às populações
marginalizadas, como os negros, os quilombolas, os moradores de rua e os
indígenas. Mas o procurador de Justiça do Paraná Olympio de Sá Sotto Maior Neto
afirma que a questão é mais complexa e ultrapassa os limites da banalização das
vulnerabilidades que faz com que se deixe de perceber as mazelas alheias.
Localmente, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas)
trabalha pela promoção das políticas públicas, com o objetivo de fazer com que
as ações, projetos e programas cheguem até a população indígena e que seus
direitos sejam resguardados. Na região de Londrina, há em torno de 4,5 mil
indígenas, a maioria deles, da etnia kaingang, e quase metade, vivendo na
Reserva do Apucaraninha, em Tamarana (Região Metropolitana de Londrina).
A demarcação de terras é apontada como uma das questões mais
urgentes porque as populações estão aumentando e o espaço já não comporta a
todos. Nos territórios, uma boa parte da área é de mata, o que inviabiliza a
agricultura. “Tem pequenas terras para muita gente. Em Ortigueira, por exemplo,
tem 180 pessoas e o território tem só cinco ou seis alqueires para plantio. O resto
é mato.”
No passado, a área do território era calculada proporcionalmente
ao contingente populacional, mas esses cálculos não foram revistos com o
aumento da população indígena. Também há o problema das terras que saíram das
mãos dos indígenas e foram parar nas mãos de terceiros, inclusive com a
escritura lavrada em cartório, e a preocupação constante com a defesa desses
locais. “Existe uma ânsia de agricultores do entorno entrarem no território e,
às vezes, conseguem com a colaboração interna. Acabam corrompendo lideranças
indígenas e conseguem entrar no território e ir desmatando”, comentou
o chefe de Coordenação Técnica da Funai em Londrina, Marcos Cezar da Silva Cavalheiro.
Mas a questão das terras é apenas uma entre tantas carências
que atingem essa população. Cavalheiro reconhece o esforço da Secretaria de
Estado da Saúde, por meio da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), no
sentido de garantir maior qualidade de vida à comunidade indígena, com a
disponibilização de médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos e
fisioterapeutas, mas ainda é insuficiente para dar conta da demanda. Há também
a questão da educação. “Não tem orçamento para atender a todas as necessidades.”(S.S.)