“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” É assim que a Constituição Federal de 1988 trata a questão indígena no Brasil. Além do artigo 231, os direitos dos povos originários também são reconhecidos nos artigos 210 e 232 e em outros dispositivos legais em vigor no país. Na prática, no entanto, o que se vê é uma população em luta constante pela preservação de suas áreas legalmente demarcadas, muitas vezes, em situação de extrema vulnerabilidade, e que tenta a todo custo manter vivas sua tradição, sua cultura e sua memória.

Em 19 de abril, data em que se comemora o Dia dos Povos Indígenas no Brasil, falar sobre essa população não é apenas ressaltar a sua enorme herança histórica e sua relevância na formação do país enquanto nação, mas principalmente é falar sobre resistência.

Os livros de História costumam destacar a carta de Pero Vaz de Caminha, retratando os indígenas como figuras exóticas que habitavam as terras recém-descobertas, e a catequização dos índios pelos jesuítas no período colonial. Mas antes do Brasil da coroa, existia o Brasil do cocar. Há mais de cinco séculos, quando as caravelas portuguesas aportaram aqui, estima-se que havia dez milhões de indígenas. Com o início do processo de colonização, iniciou-se também a luta pela sobrevivência dos povos indígenas. Além das doenças trazidas e disseminadas pelos europeus, a população originária foi explorada economicamente, escravizada e dizimada.

A partir das primeiras disputas por territórios, o que se sucedeu foi um etnocídio e cenas que se tornaram corriqueiras na atualidade, como indígenas pedindo esmolas nas grandes cidades ou entrando em combates com agricultores e garimpeiros pela preservação de suas reservas, são a comprovação de que a despeito das leis e garantias constitucionais, a sociedade vem falhando na proteção dessa população.

Como esquecer das imagens que rodaram o mundo em 2023, de índios ianomâmis morrendo à míngua dentro de uma reserva no meio da selva amazônica, vítimas da desnutrição, da febre amarela, da intoxicação pelo mercúrio utilizado nos garimpos ilegais e, sobretudo, do descaso do poder público?

Atualmente, há 1.693.535 indígenas vivendo no Brasil, segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), número que corresponde a menos de 1% dos habitantes do país. E a população vem crescendo. Na contagem anterior, realizada em 2010, eram 896.917, o que aponta uma variação positiva de 88,81% em 12 anos. Mas o desenvolvimento de políticas públicas voltadas a essa parcela dos brasileiros não acompanha o crescimento populacional. Historicamente, a questão indígena no país tem sido marcada por alguns avanços em meio a inúmeros retrocessos.

No Paraná, vivem basicamente três etnias: os guaranis, os kaingangs e os xetás. Com 30.460 indígenas em seu território, segundo o último Censo, o Estado tem uma dívida histórica com essa população. Com o apoio do governo, foram cometidas atrocidades que praticamente levaram à extinção os integrantes da etnia xetá. Além de reduzir consideravelmente as demarcações indígenas em todo o território paranaense e transformar as áreas em terras devolutas, políticas da metade do século passado oficializaram o extermínio ao contratar com dinheiro público os chamados “bugreiros”, pessoas que tinham a incumbência de assassinar indígenas, vistos como entraves aos interesses de empresários e fazendeiros.

“Os bugreiros eram pagos pelo Estado e pelos fazendeiros que se interessavam na Marcha para o Oeste. Os xetás foram retirados com caminhões e não se sabe para onde foram levados. Alguns que não aceitaram ser transportados foram deixados na área, onde foi deixada também comida envenenada”, relembrou o procurador de Justiça do Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto.

O procurador integrou a Comissão Estadual da Verdade do Estado do Paraná, instituída pela Lei 17.362/2012 no âmbito da Secretaria de Estado da Justiça para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no Estado entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Na comissão, Sotto Maior coordenou o Grupo de Trabalho que tratou das violações sofridas pelos povos indígenas. “O registro é que temos, sem dúvida nenhuma, uma grande dívida histórica em relação aos povos indígenas, que foram vítimas de genocídio e expropriação de suas terras”, disse. “Um ponto muito importante nessa perspectiva da reparação às vítimas é a proposta de resgate da memória, da verdade e da Justiça e a responsabilização dos violadores. Temos esse ponto a avançar, que é a reparação.”

Mais recentemente, o MP-PR (Ministério Público do Paraná) criou o Nupin (Núcleo de Proteção aos Direitos dos Povos Indígenas) e interveio para que fosse instituído no Paraná o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, apontado pelo procurador como um grande avanço por representar um espaço no qual serão traçadas as políticas públicas para atendimento aos povos indígenas. Uma das atribuições do conselho também será a de impulsionar o Estado a cumprir o seu papel constitucional e indelegável de garantir os direitos e a proteção dos indígenas.

“Agora mesmo, há um grande movimento no Estado para recuperação do povo xetá. E este caso é bem emblemático para demonstrar o quanto é equivocada a chamada tese do Marco Temporal”, ressaltou o procurador. Em setembro de 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) considerou inconstitucional a tese do Marco Temporal, defendida por ruralistas, e que sustenta que os indígenas só teriam direito às terras que estivessem tradicionalmente ocupadas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. “(O Marco Temporal) É absurdo porque os xetás, que foram praticamente dizimados, foram vítimas de extermínio, não teriam direito à terra porque não estavam lá em 1988”, avaliou Sotto Maior.

Entre tantos atrasos no andamento das causas indígenas, o Marco Temporal surge como mais um obstáculo, na visão do procurador. “Temos um problema sério com os guaranis do Oeste do Paraná, que se encontram desde a construção (da Usina Hidrelétrica) de Itaipu, esperando pela demarcação das terras. Esse tema precisa ser solucionado. O Ministério Público tem o dever institucional, em defesa do regime democrático de direito, de intervir, especialmente em favor daqueles que estão afastados da possibilidade do exercício dos direitos fundamentais.”

Funai trabalha para garantir direitos básicos

Com certa frequência se ouve falar das pessoas socialmente invisíveis. O conceito da invisibilidade social se aplica às populações marginalizadas, como os negros, os quilombolas, os moradores de rua e os indígenas. Mas o procurador de Justiça do Paraná Olympio de Sá Sotto Maior Neto afirma que a questão é mais complexa e ultrapassa os limites da banalização das vulnerabilidades que faz com que se deixe de perceber as mazelas alheias.

Localmente, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) trabalha pela promoção das políticas públicas, com o objetivo de fazer com que as ações, projetos e programas cheguem até a população indígena e que seus direitos sejam resguardados. Na região de Londrina, há em torno de 4,5 mil indígenas, a maioria deles, da etnia kaingang, e quase metade, vivendo na Reserva do Apucaraninha, em Tamarana (Região Metropolitana de Londrina).

A demarcação de terras é apontada como uma das questões mais urgentes porque as populações estão aumentando e o espaço já não comporta a todos. Nos territórios, uma boa parte da área é de mata, o que inviabiliza a agricultura. “Tem pequenas terras para muita gente. Em Ortigueira, por exemplo, tem 180 pessoas e o território tem só cinco ou seis alqueires para plantio. O resto é mato.”

No passado, a área do território era calculada proporcionalmente ao contingente populacional, mas esses cálculos não foram revistos com o aumento da população indígena. Também há o problema das terras que saíram das mãos dos indígenas e foram parar nas mãos de terceiros, inclusive com a escritura lavrada em cartório, e a preocupação constante com a defesa desses locais. “Existe uma ânsia de agricultores do entorno entrarem no território e, às vezes, conseguem com a colaboração interna. Acabam corrompendo lideranças indígenas e conseguem entrar no território e ir desmatando”, comentou o chefe de Coordenação Técnica da Funai em Londrina, Marcos Cezar da Silva Cavalheiro.

Mas a questão das terras é apenas uma entre tantas carências que atingem essa população. Cavalheiro reconhece o esforço da Secretaria de Estado da Saúde, por meio da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), no sentido de garantir maior qualidade de vida à comunidade indígena, com a disponibilização de médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas, mas ainda é insuficiente para dar conta da demanda. Há também a questão da educação. “Não tem orçamento para atender a todas as necessidades.”(S.S.)