Duas visões de mundo que simbolizam a polarização política no País vão duelar nos próximos anos na arena democrática.

Imagem ilustrativa da imagem Duelo à vista: decreto do novo governo ressuscita debate sobre armamento civil
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De um lado, o novo governo federal e as organizações que combatem a cultura de violência. Do outro, o poderoso lobby pró-armamentista, que reúne as forças de segurança, os congressistas, a indústria de armas, o comércio especializado, caçadores e praticantes de tiro esportivo.

No cerne deste confronto, ideias essenciais e antagônicas: a proliferação de armas entre a população civil alimenta a violência ou o direito individual à defesa e ao uso de arma de fogo é algo sagrado para o exercício da cidadania plena e para o sistema democrático.

Após quatro anos de governo do presidente Jair Bolsonaro, entusiasta da segunda ideia e incentivador do uso de armas pelos civis e autor de decretos que facilitaram o acesso a elas, 2023 chegou com novos ares em Brasília.

Reforçando o simbolismo do tema, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro dia de mandato, baixou o decreto 11.366, que ”suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares; restringe os quantitativos de aquisição de armas e munições de uso permitido; suspende a concessão de novos registros de clubes e escolas de tiro; e suspende a concessão de novos registros de colecionadores, de atiradores e de caçadores”.

O ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, que também assina o decreto, sinalizou ainda que a escalada contra a atual legislação deve prosseguir ao longo do ano. ”Haverá um recenseamento geral de armas existentes no Brasil, visando separar o joio do trigo”, avisou aos jornalistas logo após o anúncio.

Um dos pontos que mais acirrou os ânimos da nova oposição foi o trecho do decreto que institui um grupo de trabalho para apresentar uma nova regulamentação à lei número 10.826, de 22 de dezembro de 2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento (leia os detalhes das alterações no infográfico anexo).

A sensação predominante no lobby armamentista é que novas restrições poderão ser sugeridas após a conclusão do trabalho, contrariando a vontade expressa na única consulta popular feita sobre o tema, o Referendo de 2005.

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| Foto: Folha Arte

Na ocasião, quase 64% dos eleitores se opuseram à proibição da venda de armas de fogo e munição no País, um dos pontos mais controversos do Estatuto do Desarmamento. No Sul do País, a negativa à proibição alcançou quase 80% e no Paraná, mais de 73%.

Preocupação de um lado, alívio de outro.

As entidades que defendem a restrição severa à circulação de armas no ambiente civil como profilaxia a homicídios ocasionais e ao ataque dos chamados “lobos solitários” celebraram as novas medidas como passo importante nos esforços de desarmamento.

“Derrame estancado”

Duas das principais entidades de atuação nacional que militam no assunto, os institutos Sou da Paz e Igarapé, emitiram nota conjunta. “Após quatro anos de caos normativo, descontrole na circulação e no comércio de armas e munições e de incentivo por parte de altas autoridades da República ao armamento da população, é com entusiasmo que vemos o novo governo federal pautar suas ações tendo como norte a segurança e ao bem-estar da população brasileira”, diz um trecho da nota.

“Armas de fogo, com raras exceções, são instrumentos fabricados para matar. São letais. São milhares de casos de homicídios e de suicídios dentro das famílias, de acidentes que deixam pessoas incapacitadas pelo resto da vida. Desta forma, toda e qualquer legislação que venha para reduzir o número de armas em circulação é bem vinda”, comemora o delegado aposentado da Polícia Federal, Rogério Caetano da Silva, do Conselho Municipal de Cultura de Paz (Compaz).

“De alguma forma, o decreto estanca o derrame de armas na sociedade”, defende Roberto Uchoa, ex-policial civil e federal, mestre em sociologia política, especialista em gestão de segurança pública e justiça criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Havia uma sensação que o governo estava perdendo completamente o controle, o que se corrobora em vários levantamentos. Esta suspensão temporária e a formação de um grupo de trabalho freiam esta sensação. Portanto, trata-se de uma medida democrática porque abre o debate na sociedade, o que permite fazer uma construção coletiva de uma nova regulamentação”, comenta.

Risco de revanchismo político

O procurador da OAB Paraná subseção de Londrina Luis Guilherme Cassarotti, acredita que é preciso se avaliar com cautela os desdobramentos que serão sugeridos pelo grupo de trabalho.

“O ´descontrole´ sobre as armas de fogo no Brasil não deve ser relacionado à atividade realizada pelos CACs, que atuam de forma regular e lícita, mas ao comércio e tráfico de armas ilegais, que abastecem o crime organizado e demais agentes criminosos”, pondera.

“A propósito, é importante destacar que as atividades de colecionismo, tiro desportivo e caça (controle de fauna exótica autorizado pelo Ibama) são permitidas há muitos anos, sendo que os primeiros registros da atividade de tiro desportivo no Brasil datam de meados do século XIX, com a curiosidade de ter sido a modalidade esportiva onde o Brasil conquistou o primeiro ouro olímpico”, ressalta.

O presidente da Sociedade Rural do Paraná, Marcelo Janene El-Kadre, classifica o tema como “polêmico e complexo” e enxerga um risco de que medidas sejam tomadas apenas por revanchismo político, sem que as medidas tenham “efeitos realmente necessários”. “Caberia, portanto, um debate e estudo aprofundados sobre o assunto”, pleiteia.

“Acreditamos que o problema maior do armamento no Brasil não está no porte ou na posse, mas no contrabando de armas, que acontece por todas as fronteiras do país, e que está nas mãos do crime organizado”, prossegue El-Kadre, líder de um dos segmentos mais engajados pelo direito ao porte de arma controlado.

“Todo cidadão de bem e capacitado deve ter o direito de se defender, defender sua família e a sua casa. Precisa haver fiscalização, regulamentação pelos excessos, mas acima de tudo o combate ao crime, que tem em mãos armas moderno, com potência máxima, colocando em risco toda uma sociedade”.

Para quem está na linha de frente no combate à criminalidade, as restrições são normalmente vistas de forma negativa, causando certa apreensão. É o caso do major Marcelo Israel da Costa Vieira, lotado no 30º Batalhão da Polícia Militar, unidade responsável pela segurança de mais de 300 mil moradores na Região Metropolitana de Londrina.

“A liberdade maior no acesso às armas para os CACs, que era um diretriz do governo Bolsonaro, resultou numa redução de 22% nos homicídios. Com muito mais pessoas com acesso a armamento controlado, a tendência é de queda na criminalidade. O cidadão de bem armado e treinado protege a si e as pessoas próximas a ele”, opinou.

No Paraná, lei tornou CACs “atividade de risco”

Aprovada em dezembro, uma emenda substitutiva ao PL 218/2021 deu à categoria conhecida como CACs (colecionadores, atiradores esportivos e caçadores) o status de atividade de risco, o que foi interpretado pelos contrários à proposta uma forma sutil de credenciá-los futuramente ao porte legal de armas.

Um dos autores do projeto, o deputado estadual Tiago Amaral, praticante do tiro esportivo, considera os efeitos do novo decreto um duro golpe à modalidade e aos clubes espalhados por todo o estado.

“O que aconteceu nos últimos tempos, não foi uma liberação excessiva e sim uma notoriedade maior dos CACs, que já existiam há muito tempo, inclusive nos governos Lula e Dilma. É preciso tirar a ideologia desta análise e colocar um olhar técnico e racional sobre este tema”, disse à Folha.

“Arma é como um carro: 99,99% das pessoas que manejar não vai se colocar em risco ou colocar outra pessoa em risco. E se um motorista cometer uma infração grave, os outros motoristas não vão ter o direito de dirigir suspenso”, compara. “Não há nenhum estudo no mundo que demonstre a relação direta entre número de civis armados e o aumento no número de homicídios. Ao contrário, a única forma efetiva de se combater o crime é desarmar apenas os criminosos”.

Além das questões filosóficas, os defensores da legislação que vigorou nos anos Bolsonaro – ressaltam que curiosamente a flexibilização começou em 2016 ainda no governo Michel Temer, com o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, atuando como Ministro da Justiça – reforçam que houve apenas ajustes no protocolo burocrático sem afetar a rigidez das regras e as dificuldades de se adquirir uma arma e que foi mais o estímulo oficial do que o regramento que fez o número de CACs aumentarem exponencialmente.

“O movimento na loja aumentou muito quando o presidente passou a fazer sinal de arminha e dizia publicamente que todos deveriam ter uma arma”, lembra Filinto José Sovierzoski Filho, 35 anos de experiência no ramo, neto do fundador da primeira loja de armas do Paraná, a Az de Espada, aberta desde 1944 no centro de Curitiba.

Filinto e Tiago lembram que as restrições afetam os treinamentos dos atiradores esportivos de alto rendimento e a saúde financeira dos clubes e das lojas, podendo provocar falências e desemprego. “Além disso, com tantas restrições, surge uma questão de segurança, que é, sem compradores, as armas vão ficar acumuladas nos estoques, ao invés de estarem distribuídas nas mãos dos cidadãos treinados e com conduta verificada”, explica o lojista e instrutor de tiro.

“O problema é que os legisladores são leigos e não ouvem quem realmente conhece todos os aspectos da nossa atividade. Não acredito que neste grupo de trabalho ouça quem realmente entende deste assunto, infelizmente”, prevê.

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