A dona de casa Maria Ferreira da Silva mal tinha se levantado no dia 29 de julho de 1998, em sua casa simples no Morro da Formiga, área de ocupação na zona norte de Londrina, quando recebeu a notícia de que os corpos de duas mulheres haviam sido encontrados no Parque do Estado, no extremo-sul da capital paulista. Naquele momento, uma sensação de angústia e desespero se abateu sobre ela. Já havia perdido a filha mais velha em um atropelamento. Então, se deu conta de que também nunca mais tornaria a ver Elisângela Francisca da Silva, de 21 anos.

A confirmação da identidade só se daria três dias depois, mas Maria Ferreira, embora não quisesse acreditar, já sabia que a filha mais nova, que estava desaparecida havia quase três meses, era mais uma vítima assassinada por Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque. Duas décadas e meia depois, o tempo parece não ter sido suficiente para fechar a ferida. “Nunca vai sarar. Eu já sofri muito nessa vida, mas essa dor foi a maior”, conta Maria Ferreira que, hoje, aos 90 anos, mora com o marido Serafim Francisco da Silva, 91, e uma filha na zona norte de Londrina.

Alguns retratos e a carteira de trabalho, com a assinatura de letras redondas e traços precisos, apesar do pouco tempo de estudo, são algumas das escassas lembranças que a família conserva para se recordar de Elisângela. “Era uma moça comum, muito simples, não tinha maldade. Para ela, todo mundo era boa gente”, comenta o pai, ao segurar com firmeza uma das fotos, um retrato em preto e branco de Elisângela. “Essa é a foto que eu mais gosto. Ela era linda. Cabelo comprido, bem preto. Era muito bonita”, completa a mãe, ao descrever o 3X4 ampliado do documento.

Vida difícil

Para compreender a história de Elisângela é preciso voltar no tempo. Desde que colocou os pés em Londrina pela primeira vez em 1955, o mascate Serafim Silva percebeu que a cidade, alguns meses mais nova que ele, tinha algo de especial. Nos anos seguintes, a vida dele e da família seria uma sequência de idas e vindas pelos 1.300 quilômetros que separam a Capital do Café e a terra natal deles, Guaraciama, município de 5 mil habitantes no Norte de Minas Gerais. As tentativas de prosperar no “Eldorado Cafeeiro” sempre batiam na trave. Mas a família não desistia de lutar.

A situação se complicou após a geada de 1975. Com o fim do trabalho no campo, as oportunidades de emprego exigiam maior qualificação. Um desafio para Serafim, que tinha a esposa e mais sete filhos para alimentar. Neste cenário, em 1977, nasce Elisângela, a nona filha do casal; um morreu ainda bebê. Sem oportunidades no Norte do Paraná, retornam para Minas. “A Elisângela foi criada lá. Era praticamente roça. Então ela cresceu nesse meio de muita simplicidade”, conta Serafim ao se recordar das brincadeiras de infância da garota.

Imagem ilustrativa da imagem 'Dor sem fim', diz mãe de londrinense vítima do Maníaco do Parque
| Foto: Celso Felizardo

Em mais uma das muitas mudanças, a família Silva retorna para Londrina. Era 1994. Com o Plano Real, o país começava a se recuperar de um longo período de crise econômica, mas os impactos positivos demorariam a chegar às classes menos abastadas da população. Alegria mesmo, só com a conquista da Copa do Mundo nos Estados Unidos. “A gente resolveu voltar para Londrina. Tinha proposta de emprego. Era mais certo que das outras vezes e achava que ia dar certo”, conta Serafim.

Um ano antes, um grupo de cerca de 50 famílias havia montado moradias improvisadas e dado início à uma ocupação no Morro da Formiga, região do Alto da Boa Vista, na zona norte. Foi lá que Serafim, a mulher, e seus filhos, foram morar. Em pouco tempo, já eram 408 famílias instaladas no Morro da Formiga, Pinheiros e Aldomas, ocupações na zona norte que enfrentavam graves problemas de infraestrutura básica, inclusive com contaminação na água que abastecia os moradores.

Mudança para São Paulo

No verão do 1996, Elisângela, já com 19 anos, resolve repetir os passos dos pais e tentar melhores condições de vida longe de casa. O destino era Campo Limpo, São Paulo. O distrito na zona sul paulistana é marcado como um ponto de transição. Fica entre as regiões mais ricas da cidade, como Morumbi e Vila Sônia, a norte; e o Jardim Ângela, que tinha um dos maiores índices de homicídio do mundo na época; e Capão Redondo, ao sul, região de periferia berço de movimentos culturais que deram origem aos Racionais MC´s.

Os altos índices de violência, porém, não assustavam a moça que se tornou babá. Foi convidada por uma tia para morar com ela e cuidar de uma prima. “Ela morava com essa tia. E ela não tinha medo de nada. Saia andar, ia pro Capão Redondo a pé, andava por tudo lá. A gente ficava preocupado, mas ela dizia que não tinha perigo”, lembra-se Serafim. “A gente ficava um pouco mais tranquilo porque ela era bem caseira. Dormia cedo, não gostava nem de dançar. Ela gostava é de passear”, completa.

As memórias da irmã, Célia Francisca da Silva, 61, são das visitas de Elisângela a Londrina. “Ela estava feliz lá. Gostava de São Paulo, da vida na casa da tia. Chegou até a namorar um engenheiro que queria casar com ela, mas acabou não dando certo”, diz. As lembranças mais sólidas de Célia são as comemorações do Dia das Mães. “Nessa época ela sempre vinha. Trazia presente pra nossa mãe e pra gente”.

Despedida

No dia 9 de maio de 1998, sábado véspera do Dia das Mães, Elisângela corria com os preparativos para embarcar para Londrina, mas não iria sem antes comprar o presente de dona Maria Ferreira. Então avisou a tia que iria sair, mas que em duas horas estaria de volta. Pegou o ônibus rumo à zona oeste, no Shopping Eldorado. Aquela despedida casual seria a última da garota meio londrinense, meio mineira, que “não tinha medo de nada”. O misto de coragem e ingenuidade, segundo relata Serafim, selou o destino de Elisângela.

No shopping, ela foi abordada pelo motoboy Francisco de Assis Pereira. Dali, seguiu com ele de moto até o Parque do Estado, área de mata do tamanho de 540 campos de futebol que marca o limite entre São Paulo e Diadema, onde o homem de 31 anos morava. No meio do matagal, Elisângela foi assassinada por “Chico Estrela”, como era conhecido entre o grupo de patinadores que frequentava. Não se sabe como Elisângela foi atraída para a mata. Em uma de suas entrevistas, o assassino diz que ela era bonita, conversava bem e em tom de deboche prossegue: “que homem que não tem uma lábia, né?”.

A tática mais comum do Maníaco do Parque era simular que fazia parte de uma equipe que realizava um ensaio fotográfico na mata. Segundo as vítimas que conseguiram sobreviver às emboscadas, o rapaz gentil se transformava em um “monstro” ao se embrenhar na vegetação.

Na única oportunidade que teve de ficar frente a frente com o assassino, após a prisão, Serafim conta que o algoz negou ter conhecido Elisângela. “Ele só começou a assumir depois”. “Nesse dia eu olhei bem no olho dele e disse que ele não tinha o direito de ter tirado minha filha de mim daquele jeito. Perguntei: ‘porque você fez isso?”, mas ele nem se importou”, lembra Maria Ferreira, em um dos poucos momentos em que não consegue segurar as lágrimas.

Parque do Estado, área de 540 hectares no extremo-sul de São Paulo
Parque do Estado, área de 540 hectares no extremo-sul de São Paulo | Foto: Governo do Estado de São Paulo/Divulgação

Sem notícias

Naquele Dia das Mães começava o calvário da família Silva. “Elisângela está desaparecida”. O recado da tia que morava em São Paulo “tirou o juízo” de todos da família em Londrina. Maria Ferreira não conseguia mais comer. Serafim tentava tudo o que podia para encontrar o paradeiro da filha. Chegou a viajar para Minas depois de alguns “desocupados” afirmarem terem a visto lá. “Rodei tudo lá, e nenhuma notícia dela. Nada. Aí voltei pra casa”.

Enquanto o país festejava as vitórias da Seleção Brasileira na Copa da França, na casa dos Silva tudo era silêncio e dor. A falta de notícias só aumentava o desespero. A tragédia verde-amarela no Stade de France, em 12 de julho, foi recebida com total indiferença no casebre já na baixada do Morro da Formiga. Pelo menos não havia o clima de festa com foguetórios, tão contrastantes com o sofrimento resignado dos Silva.

Um serial killer à solta

Naqueles meses, o noticiário da grande imprensa mostrava que a polícia de São Paulo suspeitava que um serial killer estava à solta na capital paulista. Os corpos, aos poucos, iam sendo encontrados no Parque do Estado. A história chegou até os ouvidos de Serafim e Maria Ferreira, que se agarravam à esperança de que a filha não estivesse entre as vítimas do homem o qual chamavam de “Maníaco do Parque”.

Mas depois de seis cadáveres já achados, finalmente no dia 28 de julho de 1998, a polícia localizou mais dois corpos. Um deles, totalmente nu, deixado de bruços, media aproximadamente 1,70 metro e tinha cabelos pretos, longos. As características batiam com as de Elisângela. O corpo já estava em avançado estado de decomposição, porém o solo arenoso permitiu a identificação pela digital de um dos polegares após um trabalho de reidratação da pele.

No dia em que as capas de jornais estampavam o nascimento de Sasha, filha da apresentadora Xuxa, e o depoimento da ex-secretária de Bill Clinton, Monica Lewinsky, houve espaço para a chamada sobre os dois corpos achados no Parque do Estado. “A gente queria que não fosse ela, mas não teve jeito. Assim que saiu a confirmação, fui pra São Paulo. Na época o Antônio Belinati [então prefeito] conseguiu um carro. Aí eu mesmo fui. Foi muito triste encontrar minha filha naquele estado”, revolta-se.

Edição do Estadão do dia 29 de julho de 1998 noticiou a localização do corpo de Elisângela Silva
Edição do Estadão do dia 29 de julho de 1998 noticiou a localização do corpo de Elisângela Silva | Foto: Reprodução/Acervo Estadão

Prisão

Na semana seguinte ao enterro do corpo de Elisângela, em Londrina, Francisco Pereira foi preso pela polícia em Itaqui (RS), na fronteira com a Argentina. Após 23 dias de caçada, o assassino foi capturado após ser reconhecido por um pescador. De lá, foi transferido para a Delegacia de Homicídios, no centro de São Paulo. “Muita gente se reuniu na porta. Queriam linchar ele. Eu estava lá, quase levei uma pedrada na cabeça”, relata Serafim.

Possibilidade de soltura

Ficar frente a frente com o assassino é definido por Serafim como a pior experiência da vida. Agora, com a possibilidade de soltura de Francisco Pereira, em 2028, uma vez que na época do crime a pena máxima no país era de 30 anos, Serafim e Maria Ferreira demonstram preocupação, mas não acreditam que ele conseguiria ter uma vida fora da cadeia. “Eu acho que as pessoas matariam ele”, diz Maria Ferreira ao ser interrompida pela filha Cátia Regina da Silva, de 53 anos: “eu seria a primeira a ir atrás dele”, dispara.

Especialistas afirmam que pelo quadro de psicopatia diagnosticado, o caso de Francisco Pereira é irreversível. O promotor responsável pela acusação dos crimes do motoboy que resultou em condenação de 285 anos, Edilson Mougenot Bonfim, é categórico ao afirmar que, se o criminoso for solto, voltará a matar. Francisco, que continua sob a guarda do sistema penal de São Paulo, se diz regenerado após se tornar evangélico. “Todos dizem a mesma coisa”, debocha Serafim.

Filme

Se o tempo não cicatriza as feridas, pelo menos ajuda a amenizar a dor. A família não esconde o incômodo ao comentar sobre as produções recentes sobre o Maníaco do Parque, filme e documentário disponíveis no Prime Vídeo e que ficaram entre os mais assistidos nas plataformas nacionais. “Eu acho complicado remexer nessa ferida. Eu não acho legal”, opina Célia. “De uma forma ou de outra, dá ‘Ibope’ pra ele. Esse nome tem que ser esquecido”, completa Cátia.


No filme disponível no Prime Video, o ator Silvero Pereira interpreta o Maníaco do Parque
No filme disponível no Prime Video, o ator Silvero Pereira interpreta o Maníaco do Parque | Foto: Divulgação Prime Video/IMDB

Na família ninguém assistiu às produções. Serafim diz que ouviu falar sobre o filme, mas streaming é uma realidade muito distante para ele. A única tecnologia que aprecia é seu radinho prateado com aparência retrô, mas com entrada para pen-drive. Passa as tardes na varanda sentado no banquinho ouvindo música antiga, com os cigarros no bolso da camisa. Às vezes, dona Maria Ferreira lhe faz companhia, mas geralmente está ocupada com algo. “Estou vendo se consigo no posto de saúde uma cirurgia para a vista. Mas acho que vou ter que esperar mais um pouco”, diz com voz serena, do alto dos 90 anos.

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Desrespeito

As produções cinematográficas não são a maior preocupação da família em relação à memória de Elisângela. Recentemente, Cátia encontrou no TikTok um conteúdo perturbador que lhe tirou o sossego. Um perfil utilizou ferramentas de Inteligência Artificial para “animar” uma foto de Elisângela. No vídeo, Elisângela aparece narrando um texto em que diz que foi assassinada pelo Maníaco do Parque. Ao fundo uma música macabra dá o clima de terror. “Usaram a imagem da minha irmã sem permissão e ainda erraram. Colocaram a história de outra vítima. Um desrespeito sem tamanho”, indigna-se, ao dizer que precisa arrumar um advogado para a questão.

Outro desgosto para a família foi chegar ao Cemitério Jardim da Saudade, (zona norte), no Dia de Finados, no início do mês, e se deparar com o túmulo todo destruído. “A gente chegou lá e foi horrível. Levaram a placa de bronze, quebraram tudo. Nem a foto dela ficou inteira. Por sorte a polícia recuperou a placa. Agora precisamos juntar um dinheirinho para reformar o túmulo”, planeja Serafim.

O único consolo do casal nonagenário entre tantas amarguras é a família. Gostam quando a casa se enche com os filhos, netos e bisnetos. Serafim ralha com uma das pequenas, mas logo se arrepende. “Criança é coisa de Deus”. E assim os Silva seguem a vida, sabendo que é preciso “tocar em frente, um dia após o outro”.