Dois anos após entrega da PEL 3, cadeias da região seguem superlotadas
Detentos da unidade reclamam de más condições carcerárias. Superlotação é de 9 mil vagas no Estado e de 2.155 na região de Londrina
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sexta-feira, 29 de março de 2024
Detentos da unidade reclamam de más condições carcerárias. Superlotação é de 9 mil vagas no Estado e de 2.155 na região de Londrina
Simoni Saris - Grupo Folha
Com capacidade de 28.232 vagas, as unidades prisionais do
Paraná concentram uma população carcerária de 37.246 detentos, segundo dados
atualizados na última quinta-feira (28) pelo Deppen (Departamento de Polícia
Penal). O excedente superior a nove mil presos agrava os problemas no sistema
penal e expõe os encarcerados a condições precárias que violam os direitos
humanos e a própria Lei de Execução Penal, que dispõe sobre as condições para o
cumprimento das sentenças, incluindo os direitos garantidos às pessoas privadas
de liberdade, como assistência à saúde e alimentação adequada.
Entregue há dois anos, a PEL 3 (Penitenciária Estadual de Londrina), tinha como principal objetivo reduzir a superlotação nas prisões da região. Mas, passado este tempo, o excesso de presos continua no mesmo patamar. São 6.905 pessoas encarceradas para um total de 4.750 vagas.
Vez ou outra, a precariedade do sistema penal e a vulnerabilidade dos detentos são alvos de denúncia de entidades de promoção dos direitos humanos que funcionam como porta-vozes de quem dispõe de poucos meios para se fazer ouvir. Mas recentemente, um dos detentos que vivem nas unidades prisionais da região de Londrina decidiu quebrar as barreiras que impõe o silêncio entre a população encarcerada e falou mais alto. Ele redigiu uma carta endereçada ao diretor-geral da Polícia Penal do Paraná, Reginaldo Peixoto. Uma cópia dessa carta chegou até a reportagem da FOLHA.
O detento enumerou uma série de violações de direitos enfrentada pela comunidade carcerária da PEL 3, onde ele cumpre pena. A lista é longa e mais do que uma denúncia, é um pedido de socorro.
A principal queixa expressa na carta refere-se à dificuldade
de assistência médica. Segundo o detento, eles estão “há vários meses sem
atendimento e também com falta de medicamentos”. O acesso à saúde, disse ele,
só é liberado “em casos extremos”. Ele também reclama da alimentação que, desde
o ano passado, estaria apresentando problemas. O arroz e o feijão são servidos
crus e sem o devido cuidado no preparo. No feijão e na salada, já foram
encontrados pedaços de plástico, de madeira e até caramujos.
A lista de problemas segue e inclui criadouros do mosquito
Aedes aegypti que estariam sendo mantidos em vasos sanitários instalados a céu
aberto no pátio de sol da unidade prisional. O detento relatou que os próprios
presos já se ofereceram para fazer a limpeza do local, mas não tiveram
autorização da direção do presídio que se comprometeu a remover os focos de
dengue, mas não o fez.
Estão na lista ainda a falta de itens de higiene pessoal que
estariam sendo distribuídos em quantidade insuficiente para atender a todos os
presidiários. A cota de creme dental, sabonete e papel higiênico, que já era
pouca, nos últimos meses diminuiu e como nem todos os detentos recebem o kit, mesmo
com o compartilhamento entre eles os suprimentos não chegam a todos. As celas,
com capacidade para abrigar quatro detentos, estariam com dez pessoas em cada
uma, mas o cálculo dos produtos de higiene estaria sendo feito como se não
houvesse superlotação. O corte, afirmou o preso, teria iniciado a partir
deste ano e a reivindicação é que as quantidades sejam revistas pelo sistema
prisional.
Por fim, o detento reclama do corte de água. Diariamente,
das 22 às 5 horas, o abastecimento é suspenso. “Não conseguimos entender o
porquê disso. Chegamos a passar mal de tanto calor”, disse ele, mencionando
ainda a dificuldade de manter a higiene na cela no período noturno, obrigando
os presos a conviverem com o mau cheiro.
Além de contrariarem o que preconizam os direitos humanos, os
problemas relatados pelo detento da PEL 3 violam também a Lei de Execução Penal
que, no artigo 41, dispõe sobre os direitos dos presos, que incluem alimentação
suficiente, assistência material e à saúde.
Orgãos e entidades que atuam na assistência a essa população
e a seus familiares afirmam que situações como a relatada pelo detento não são
um caso isolado, mas uma condição comum a todos os presídios. E há um consenso
entre eles de que nos últimos anos o desrespeito à população carcerária vem se
agravando no Estado.
Membro do Movimento Nacional dos Direitos Humanos no Paraná,
Carlos Enrique Santana lembra que é dever do condenado pagar pelo crime
cometido, porém “em condições humanas de sobrevivência”, com acesso à saúde,
higiene e alimentação de qualidade. “Você está tirando a liberdade e não o
direito à vida, que é inalienável. Não se brinca com a vida humana.”
Santana ressaltou que a partir do momento em que uma pessoa é
privada de sua liberdade e vai para uma unidade prisional pública, o Estado torna-se
responsável pela sua vida. “Todo o mal que acontecer a esse cidadão, o gestor
público é obrigado a responder, inclusive juridicamente. O Estado, a sociedade,
são responsáveis pelo cidadão encarcerado. Se o preso está sujo, se a
alimentação é de má qualidade, tem de responsabilizar alguém e o responsável é
o Estado.”
“Conheço a realidade do sistema. Eu era servidora pública,
trabalhava no sistema penal, isso tudo não é novidade”, disse a coordenadora da
Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Londrina e da Regional Sul 2 da questão
da mulher presa, Cristina da Silva Souza Coelho. Ela avalia que houve um “endurecimento”
do sistema penal no Paraná nos últimos anos. “Hoje, existe uma preocupação com
a questão da segurança e dentro dessa perspectiva, que é louvável, se deixou de
lado a outra vertente que é pensar no tratamento das pessoas que estão lá.”
Priorizar os investimentos em repressão em detrimento da
ressocialização e reintegração, comentou Coelho, aumentou a invisibilidade
dessa população. “São recorrentes as denúncias de alimentos sem condições de consumo,
mas a voz dos presos não é ouvida. Nem a deles nem a de seus familiares. Embora
a lei diga que a prisão só priva o cidadão do direito de ir e vir, eles têm muitos
outros direitos negados, como o de atendimento de saúde digno, respeitoso, em
um espaço físico que lhe garanta dignidade. A estrutura dos presídios é
torturante.”
Coelho diz que mesmo nas unidades onde há uma direção
preocupada em oferecer condições menos degradantes aos detentos, esse interesse
esbarra na falta de autonomia. Com o seu trabalho na pastoral, ela atua em
favor da justiça restaurativa e se coloca em uma posição de escuta e acolhimento,
especialmente das famílias dos encarcerados. Quando possível, cuida de
encaminhar as queixas e denúncias aos órgãos e autoridades competentes.
Para Santana, o problema não é o enrijecimento da gestão do sistema penal, mas a corrupção instalada nos órgãos responsáveis pelos cuidados com os detentos, aliada à falta de profissionais com visão mais humanizada para a questão. “Não houve um endurecimento. O sistema faliu mesmo”, disse. “É preciso colocar gestores do serviço público com mais dignidade e seriedade. Se não tiver uma gestão dos recursos com qualidade e sem corrupção, vai ter sempre um Estado podre como o nosso”, afirmou ele, que também aponta a falta de fiscalização de órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
A OAB-Londrina informou que quando recebe denúncias dessa ordem, encaminha para estudo e elaboração de parecer para a Comissão de Direitos Humanos da Subseção. "Apresentada análise pela comissão, são˜deliberadas pela diretoria as eventuais providências ali indicadas", diz a nota. A reportagem não conseguiu contato com os demais citados.
Procurado pela reportagem, o Deppen negou, por meio de sua
assessoria de imprensa, a ocorrência dos problemas relatados na carta redigida
pelo detento. Disse que há atendimento ambulatorial dentro da unidade penal e
que o fornecimento de medicamentos segue normalmente. Quando há necessidade de
encaminhamento para uma especialidade, esse atendimento é feito pelo SUS.
Em relação à alimentação, o fornecimento é terceirizado e
antes de ser servida aos presos, a comida é avaliada por uma comissão capacitada.
Sobre os criadouros de dengue que estariam sendo mantidos
dentro da unidade prisional, o Deppen disse estar atento às medidas de
prevenção contra a dengue e que a limpeza do pátio de sol é feita diariamente
após o uso por presos que trabalham na faxina em troca da remissão de pena.
E a respeito do envio das sacolas, todos os detentos recebem
individualmente, a cada 15 dias, de seu familiar, os itens pré-estabelecidos
conforme portaria interna da Polícia Penal, padronizada em todo o Estado. A
instituição também fornece alguns itens aos presos.
A única queixa confirmada pelo Deppen foi o corte no abastecimento de água entre as 23 horas e as 5 horas. Segundo o órgão, a medida é adotada para garantir a pressão da água fornecida durante o dia e evitar o desperdício. “Além disso, nesse período da madrugada, não é necessária a realização de limpeza nas celas, pois, teoricamente, as PPLs (pessoas privadas de liberdade) devem estar dormindo".
O Deppen não respondeu se o diretor-geral da Polícia Penal do Paraná, Reginaldo Peixoto, recebeu a carta.
Coletivo faz a ponte entre famílias e órgãos competentes
Articuladora da agenda nacional contra o encarceramento em
Londrina e integrante do coletivo Desencarcera Londrina, Natalia Lisboa disse
que várias denúncias chegaram até ela há cerca de três semanas, referentes à alimentação
servida nos presídios. Entre os detentos e seus familiares, afirmou ela, existe
um consenso de que o tratamento dispensado aos presos no Paraná piorou muito
após a terceirização dos serviços. “Eles reclamam que a opressão aumentou
muito, assim como os maus tratos.”
Os presos, em geral, têm medo de denunciar e sofrerem
represálias. Então, muitas das queixas feitas por eles são repassadas por seus
familiares e Lisboa tenta fazer a ponte entre as autoridades responsáveis pelo
sistema penal, mas vê pouco retorno. Enquanto os detentos se queixam das
condições a que são mantidos durante o encarceramento, como a alimentação de má
qualidade, servida desde 2021, as famílias, especialmente mães e esposas, são
expostas a constrangimentos nos dias de visita. “Trocaram os scanners corporais
em março para que elas não passassem por revistas vexatórias, mas continuam tendo
que abaixar a calcinha e erguer o sutiã. Também é proibido entrar com
alongamento de cílios e unhas de fibra ou de gel na PEL 1. Se elas estiverem usando, são
obrigadas a retirar antes de entrar no presídio. Uma regra que ninguém entende e ninguém explica o porquê.”
Após a pandemia, Lisboa percebeu um estreitamento maior das
regras. Uma delas é em relação aos alimentos levados pelos visitantes que vão
passar o dia na companhia dos parentes presos. “Antes, podia levar arroz,
feijão. Agora são só dois lanches por pessoa. O visitante fica lá das 8 às 15
horas, com dois lanches. Só para as crianças que é liberada uma marmitinha.”(S.S.)
Projeto de extensão tenta humanizar encarceramento
Algumas ações isoladas e ainda tímidas tentam amenizar um
pouco o cotidiano de quem vive encarcerado. Uma dessas iniciativas surgiu
dentro da UEL (Universidade Estadual de Londrina), por meio do projeto de
extensão Grades em Transgressão: Novos Horizontes de Inclusão e Inovação Social
para Mulheres, coordenado pela professora Margarida de Cássia Campos.
A cada 15 dias, um grupo multidisciplinar formado por
estudantes e recém-formadas da UEL visitam a cadeia pública de Santo Antônio da
Platina (Norte Pioneiro) onde desenvolvem atividades voltadas à inclusão e
reinserção com as 96 detentas da unidade. O objetivo primordial é humanizar o
cumprimento da pena.
Realização de oficinas, ações de inclusão digital, política,
artística e cultural fazem parte do projeto de extensão, assim como temas como
equidade de gênero, autoestima, autonomia e empoderamento. “Nos deparamos com
uma situação muito precarizada. Elas ficavam muito ociosas”, comentou a
pedagoga integrante do projeto, Muriel Luvison Nunes da Silva.
Durante as visitas, as integrantes do projeto se deparam com todo tipo de carências. Desde as materiais, como produtos de higiene pessoal, até a formação da cidadania. Muitas das detentas não tinham sequer o CPF. “A falta dos documentos acaba dificultando muitas ações, inclusive a saída delas da prisão”, disse Silva. Um dos objetivos do projeto é atuar no combate ao analfabetismo, com a implantação de uma escola direcionada à educação de jovens e adultos. “Acessar a educação faz parte do processo de reinserção porque não tem como reinserir uma população que nunca foi inserida. O mesmo sistema que promove o sistema penal exclui as mulheres pobres, negras, LBTs.”(S.S.)