No domingo (18), a Prefeitura de Piraí do Sul (Campos Gerais) realizou um desfile cívico em que crianças pretas desfilaram com correntes de papel para retratá-las como escravizadas pela avenida Bernardo Barbosa Milléo, uma das vias mais comerciais da cidade. A exposição em situação constrangedora pode ser alvo de investigação. A parada teve a participação de estudantes de escolas municipais e estaduais, representantes do poder público municipal, representantes religiosos, associações etc. O desfile cívico fez parte das comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil.

Cris Zelenski, da ONG Instituto Sorriso Negro dos Campos Gerais, ressaltou que há "uma história linda para se contar do preto nos Campos Gerais". "Quando achamos que estamos evoluindo nas questões raciais, nos deparamos com cenas como aquelas. Eu sinto que não evoluímos nada, que letramento racial não existe. E que nós, enquanto movimento social, temos muito trabalho pela frente. Estamos enxugando gelo. Damos cinco passos para frente e dez para trás. O que me deixa estarrecida é que tanto prefeitura do município quanto a escola em questão foram aplaudidas, ou seja, tiveram o validação de pessoas inclusive da comunidade quilombola", criticou Zelenski.

Ela reforçou que a história do negro no Brasil é vista somente a partir da escravização e que se o desfile priorizou histórias daquele período, poderia ter retratado história da Comunidade Quilombola Família Xavier, de Piraí do Sul, mas não acorrentando crianças, nem vendo o preto a partir da subjetivação, como mercadoria.

"Nós somos ricos em história, em heróis, em cultura, aliás foi do solo africano que nasceu a metalurgia, a astronomia." Ela ressaltou que poderiam ter sido retratadas a Revolta dos Males, Dandara, Negro Tebas, como nasceu a Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte, os irmãos Rebouças. "E foi o centenário do nascimento de Luís Gama, que tem uma história linda. Aqui mesmo tem a história da Fazenda Capão Alto. A história não conta, mas existiam os negros de empréstimos, que saíam das fazendas para fazer a contabilidade nas vendas", destacou.

"E o que dizer das ganhadeiras, negras empreendedoras que ganhavam com seus tabuleiros e ainda juntavam dinheiro para pagar alforria de outros negros." Ela ressaltou que a história do negro não pode ser vista só como de seres subservientes. "É com total repúdio que eu falo sobre esse ato extremamente vexatório para aquelas crianças e para a história afro-brasileira."

NOTA OFICIAL DA PREFEITURA

Em nota oficial, a Prefeitura de Piraí do Sul publicou que o evento “visava comemorar o Bicentenário da Independência do Brasil, resgatar valores como civismo e desenvolver o sentimento de pertença em toda a população piraiense.” A nota diz ainda que as escolas possuem autonomia para manifestações, e que a apresentação foi de uma das instituições do município de Piraí do Sul e que a apresentação foi contextualizada do período pré-colonial e colonial brasileiro, e que abordou “alguns momentos históricos de grande relevância como: descobrimento, contato com indígenas, escravidão, Independência, Lei Áurea e a consequente abolição da escravatura.”

“O Município entende que em momento algum o ato ficou caracterizado como ofensa aos negros nem se destinou a qualquer desrespeito à dignidade da pessoa humana. Levando-se em consideração o contexto, tanto do momento do desfile quanto das ações cotidianas da escola, repudia-se qualquer menção ao racismo ou outra forma de preconceito.”

Defensoria vai apurar a circunstâncias do ato

A DPE-PR (Defensoria Pública do Estado do Paraná) abriu um procedimento para apurar as circunstâncias do desfile cívico. O Nucidh (Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos) e o Nudij (Núcleo da Infância e Juventude) abriram um procedimento preparatório para, caso necessário, ajuizar uma ação civil pública contra os órgãos responsáveis pelo ato. Os núcleos vão cobrar explicações do município sobre o episódio.

Os coordenadores do Nucidh e do Nudij, defensores públicos Antonio Vitor Barbosa de Almeida e Fernando Redede Rodrigues, classificaram o ato de colocar crianças negras no desfile para representarem pessoas escravizadas como de extrema gravidade.

“É com preocupação e espanto que o Nucidh vê a utilização das crianças negras acorrentadas para remeter a fatos históricos escravagistas em pleno desfile cívico sobre a independência do Brasil. Num desfile cívico que celebra a independência do Brasil, deveriam ser exaltadas a cidadania e igualdade, e não o reforço a estereótipos”, afirmou Almeida.

Para Redede, a exposição das crianças no ato é inadmissível. “O estigma que isso pode causar na vida das crianças, na personalidade delas, na história delas é muito grave. Estamos em um mundo de superexposição e isso pode causar futuro sofrimento e dano a essas crianças. É um ato de extrema irresponsabilidade”, afirmou. Ele ressaltou que as crianças podem sofrer maus-tratos (bullying). “Às vezes não tem como ter domínio sobre isso e é preciso ter controle de qualquer evento que exponha uma criança, desde como ela vai aparecer até que símbolos ela vai carregar. Essa atividade foi muito infeliz”, declarou Redede

Redede afirmou que ele e o coordenador do Nucidh vão oficiar a prefeitura de Piraí do Sul inicialmente para saber mais informações, como que se deu, quem estava organizando e qual era a temática do desfile. “Queremos saber se teve autorização dos pais dessas crianças para participar para entender melhor a razão desta situação acontecer. Temos canais de atendimento da Defensoria e se algum pai ou responsável quiser nos contatar a gente fica de antemão disponível para esta conversa e atendimento.”

Sobre a nota oficial do município, ele ressaltou que ainda que a intenção dos organizadores não fosse expor a criança, a ideia foi infeliz. “A gente precisa considerar que o evento foi público e muitas pessoas eram crianças e não havia controle da participação delas e elas estavam ali por orientação de outra pessoa.” De acordo com Redede, a questão é que podem utilizar fotos daquele desfile e podem causar sofrimento futuro para estas crianças. “Mesmo que a intenção não seja essa, é preciso considerar que estamos em um mundo de superexposição de todos os eventos públicos e não ia ser diferente neste caso.”

A DPE-PR é a instituição responsável pela defesa e promoção dos direitos humanos e da democracia no estado, com orientação jurídica e defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos. Os núcleos também são mecanismos específicos de atuação coletiva da Defensoria voltados ao enfrentamento de questões que representem ameaça à violação de direitos individuais e coletivos.

O Ministério Público do Paraná, por meio da Promotoria de Justiça de Piraí do Sul, informa que teve ciência dos fatos pela imprensa e que instaurou procedimento nesta segunda-feira, 19 de setembro, para apuração do ocorrido, solicitando esclarecimentos ao Município. Por envolver crianças, o procedimento é sigiloso.

COMUNIDADE QUILOMBOLA

Segundo o Censo do IBGE de 2010, Piraí do Sul tem 23.424 habitantes, das quais 555 são autodeclaradas pretas e 3.744 pardas. Piraí do Sul possui 10 comunidades quilombolas, segundo dados do governo federal. Destas, 44 famílias são pertencentes à Comunidade Quilombola Família Xavier que residiam na Fazenda Boa Vista e que foram expulsos do local. Quilombolas são os descendentes e remanescentes de comunidades formadas por escravizados fugitivos (os quilombos), entre o século XVI e o ano de 1888 (quando houve a abolição da escravatura), no Brasil.

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