A sensibilidade no momento singular do nascimento é acompanhada pela fragilidade da mulher que gera uma nova vida e se expõe aos perigos da natureza em sacrifício pelo primeiro suspiro do rebento.

Priscila Santos registrou um boletim de ocorrência contra o médico que fez o parto da filha
Priscila Santos registrou um boletim de ocorrência contra o médico que fez o parto da filha | Foto: Gustavo Carneiro

Existe uma beleza ímpar no nascimento, mas também existe negligência, descuido, desrespeito, violência e indiferença diante da vida. Segundo o projeto Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, 45% das mulheres atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) já foram vítimas de maus-tratos no parto.

Entre outubro de 2021 e outubro de 2022, o Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres) da Defensoria Pública do Paraná, registrou 31 casos de violência obstétrica no Estado, o que representa um aumento de 675% em relação ao ano anterior, quando apenas quatro denúncias foram feitas por meio dos telefones 180 (Central de Atendimento à Mulher) e Disque 100 (Direitos Humanos).

Em 2019, o serviço do governo federal teve 18 denúncias, mas os relatos de violências obstétricas caíram no período em que a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos foi comandada pela ex-ministra do governo Bolsonaro, Damares Alves.

"O número de mulheres que são vítimas de violência obstétrica é muito maior, pois as denúncias são subnotificadas. A pesquisa aponta que 45% das mulheres atendidas pelo SUS relatam maus-tratos. Muito provavelmente são notificadas situações mais graves, ou seja, aquelas rotineiras, como falas ríspidas e agressões psicológicas, correm risco de não serem mencionadas pelas entrevistadas durante o levantamento”, analisa a coordenadora do Nudem, Mariana Martins Nunes, que espera a ampliação do canal nacional para denúncias por meio de um novo aplicativo e fortalecimento do cuidado materno-infantil com o retorno da Rede Cegonha no País.

A coordenadora ressalta a importância na divulgação do assunto entre as mulheres e conscientização dos direitos no parto para que as mães sejam respeitadas e possam fazer denúncias se sofrerem violências em um momento tão delicado. Nunes lembra que 45,2% das denúncias registradas pelo Núcleo, no último ano, foram feitas por mulheres da cidade de Francisco Beltrão (Sudoeste) após discussões sobre o tema em rodas de conversas e palestras em um projeto para o público feminino na cidade. Além disso, foram 14 denúncias espontâneas e três durante inspeções no sistema carcerário.

De acordo com ela, a violência obstétrica é todo ato praticado pela equipe de saúde que ofenda a integridade física, psicológica e sexual da gestante em trabalho de parto, no período puerperal ou em situações de abortamento. A defensora pública ainda esclarece que a agressão pode ser cometida por outros funcionários da unidade de saúde e não apenas pelo médico.

“Entre as violências verbais estão frases que desconsideram a dor ou de cunho sexual, como ‘na hora de fazer não chorou’. No caso de aborto, existe a culpabilização da mulher por profissionais da saúde que estão ali para o cuidado e não para exercer a função policial. Na maioria dos casos, as mulheres que sofreram aborto ainda ficam no mesmo local com outras mães com os seus bebês por falta de estrutura dos hospitais”, comenta.

Nunes ressalta que a mulher tem direito de escolher o tipo de parto - normal ou cesariana -, mas faz ressalvas à tendência de “medicalizar o parto no Brasil”, o que vai na contramão do recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde). “O ideal é o nascimento mais natural possível, vaginal, levando em conta o que é melhor para a saúde da mulher e do bebê. Ainda falta, no País, implementar esse novo modelo de cuidado, que leva em consideração as boas práticas e evidências científicas”, frisa.

Ela lembra que a maioria das denúncias de violência obstétrica aconteceram durante os partos normais (54,8%), sendo a maioria das agressões verbais e psicológicas.

DIREITOS

Além da autonomia na escolha do parto, a defensora pública ressalta que a paciente tem direito legal ao acompanhante durante o nascimento da criança. A pessoa deve ser um “porta-voz” da mulher no momento de vulnerabilidade e exigir que as escolhas da paciente sejam respeitadas.

Nunes também destaca que o Plano de Parto é um documento, junto à carteira de gestante, que é feito durante o pré-natal, período em que a mulher pode colocar todas as informações de como espera que o parto seja feito, com ou sem anestesia, normal ou cesariana, a posição que prefere e se tem restrição a alguma intervenção sem necessidade clínica.

“O parto não deve ser controlado, deve ser cuidado e a mulher vai parir conforme o processo fisiológico e natural. Se ocorrer a necessidade de intervenções, a mulher deve ser informada.”

Desde outubro de 2022, o Nudem passou a contar com um canal de denúncias próprio por meio do formulário digital disponível no link: https://www.defensoriapublica.pr.def.br/Formulario/Formulario-para-Registro-de-Violencia-Obstetrica.

MANOBRA

A coordenadora do Nudem (Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres), Mariana Martins Nunes, também faz um alerta para o uso de técnicas sem comunicar a paciente ou intervenções invasivas que não devem ser usadas de maneira indiscriminada, como a episiotomia, que é o corte do períneo da mulher para facilitar a passagem do bebê. “Deve ser feita com indicação clínica em casos específicos, mas na prática é usada em praticamente metade dos partos pelo SUS”, critica.

Recentemente, o Ministério Público de Londrina apresentou denúncia criminal por violência obstétrica contra um médico da rede municipal. A suposta vítima foi uma adolescente de 16 anos. Durante o parto, em 2019, o procedimento de episiotomia teria sido usado de forma desnecessária e sem o consentimento da paciente.

Já a manobra de Kristeller foi banida da medicina, mas ainda existem denúncias que o antigo método é utilizado para acelerar nascimentos. A técnica consiste em forçar a região superior do útero para pressionar a saída do bebê, o que não é indicado por colocar em risco a saúde da mulher e da criança.

Advogada especialista em violência obstétrica e Direito Médico, Débora Nicodemo afirma que o médico ou profissionais da saúde podem ser responsabilizados no campo administrativo com denúncia ao órgão de classe. Na área civil, pode acontecer a reparação pelos danos morais, materiais e outros que a vítima eventualmente tenha sofrido. “O processo penal também pode ser instaurado quando há cometimento de crimes”, acrescenta.

Procurada pela FOLHA, a Febrasgo ( Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) respondeu, em nota, que a expressão violência obstétrica foi “criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros” e coloca o desrespeito e a descortesia no mesmo contexto de condutas médicas, “muitas delas controversas, até passíveis de discussão científica, mas jamais devendo ser tratadas no âmbito da legislação penal.”

A Febrasgo ainda argumenta que “no afã” do combate aos abusos, maus-tratos, negligência e desrespeito, alguns procedimentos e intervenções “que são importantes para uma assistência obstétrica segura, quando utilizadas no momento correto e com indicações precisas, têm sido arrolados” nas denúncias de violência obstétrica, entre eles, a cesárea, o uso de ocitocina, amniotomia, cardiotocografia e a episiotomia.

PARADAS CARDIORRESPITARÓRIAS

Moradora de Ibiporã (Região Metropolitana de Londrina), Priscila de Almeida Santos, 29, registrou um boletim de ocorrência contra o médico que fez o parto da filha no início deste ano. Ela acusa o profissional de lesão corporal grave que teria provocado hemorragia e a perda do útero, além de ofensas verbais após o nascimento da menina.

Segundo o relato dela, a carteira do pré-natal tinha informações sobre complicações na retirada da placenta durante o parto do primeiro filho, mas o médico responsável não teria conversado com a paciente ou tomado algum tipo de cuidado preventivo.

“A enfermeira ligou para ele três vezes, mas o médico só apareceu uns 30 minutos depois que a bebê tinha nascido. Ele desceu gritando, me ofendendo e falando que agora eu ia ter a cirurgia que eu queria”, declara.

A paciente afirma que durante o procedimento no final do parto, o médico teria dado um “tranco com muita força” na barriga, o que teria provocado o deslocamento de parte do útero e uma hemorragia. “Senti que um ovo saiu entre minhas pernas. Entrei em choque e tive duas paradas cardiorrespiratórias.”

Após o encaminhamento para outro hospital, a mãe disse que ficou entubada por 36 horas depois da retirada do útero e do ovário direito. Ela teve alta, mas retornou ao mesmo hospital público em Londrina e depois de idas e vindas, o exame apontou para infecção causada por duas bactérias hospitalares e o quadro de sepse com risco de parada dos órgãos.

“Fiquei internada por oito dias em um hospital particular e o custo do tratamento foi de R$ 34 mil. Eu me preparei para voltar para casa com minha filha, não para passar por tudo isso e quase morrer três vezes”, desabafa.

Procurada pela reportagem, a Polícia Civil do Paraná respondeu, em nota, que está investigando o caso. “A vítima e testemunhas serão ouvidas nos próximos dias”, declara, sem prestar outros esclarecimentos.