Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, em 2021, o Brasil registrou 22,3 MVI (Mortes Violentas Intencionais) para cada grupo de 100 mil habitantes, redução de 6,5% em relação a 2020. No entanto, o próprio anuário afirma que é preciso cautela na identificação dos fatores e causas para este fenômeno, já que muitas das tentativas de explicação simplista e/ou interessada são realizadas no afogadilho da proximidade das eleições.

A qualidade dos dados de inserção no Datasus/SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) sobre mortes violentas caiu nos últimos anos, segundo o economista Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência.

Cerqueira atualmente é diretor-presidente do IJSN (Instituto Jones dos Santos Neves), no Espírito Santo. Mestre e doutor em Economia e especialista com projeção internacional na área de Segurança Pública, o pesquisador é técnico de planejamento e pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e foi cedido ao governo capixaba pelo órgão vinculado ao Ministério da Economia.

“A gente nem procurou analisar muito a fundo a questão da violência nos estados com os dados mais recentes de mortes violentas, porque eu acho que a qualidade dessas informações piorou muito”, declarou Cerqueira.

Ele afirma que o crescimento das mortes violentas por causa indeterminada dificulta uma melhor compreensão da evolução da violência letal no Brasil. Além disso, ele assegura que os homicídios não computados também podem afetar os resultados de outras variáveis, reduzindo o nível de confiança das análises sobre juventude, homens e mulheres, negros e não negros, pessoas indígenas e homicídios por armas de fogo.

“Fui diretor do Ipea por três anos e atuei 25 anos no Ipea. A questão é: por que a qualidade dos dados piorou tanto? Eles já não eram da melhor qualidade, mas as informações que a gente obtinha eram razoáveis. No entanto, a partir de 2019 piorou muito. Uma coisa curiosa é que a base final costumava ser divulgada em maio de cada ano. Em 2019 e 2020 esses dados finais foram entregues antes, sem qualquer cuidado no tratamento dos números, dois meses antes do habitual. Nunca vi isso acontecer. A gente acredita que essa piora esteja relacionada a uma degradação no trabalho do Ministério da Saúde.”

Segundo ele, houve um desmonte das equipes que trabalhavam no ministério. “Antes, se os Estados enviassem dados ruins, com o trabalho qualificado do órgão federal era possível melhorar isso. Com o desmonte da equipe que havia no ministério acredito que não há mais esse trabalho de acompanhamento do processo (follow up) e de supervisão dos dados.”

Ele explicou que a primeira fonte do dado é a declaração de óbito, elaborada pelo médico legista. “É ele quem faz o laudo cadavérico e vai preencher a declaração de óbito. Na causa do óbito há um campo de quatro linhas, em que o médico precisa preencher falando sobre a causa mais básica e imediata do óbito, se foi um acidente, se foi alguém que agrediu essa vítima e ele veio a falecer ou um suicídio. Quando não se sabe isso, o médico legista deixa em branco aquelas linhas e vai para o próximo campo.”

Ele explicou que a orientação anterior era de que se algum estado enviasse uma base com muitas mortes indeterminadas, o Ministério da Saúde orientava as pastas estaduais a pesquisar o que havia ocorrido. “Quando isso ocorria era feito um trabalho junto às secretarias estaduais para que o dado fosse melhorado. A secretaria de saúde olhava aquela declaração de óbito com o campo em branco na causa básica do óbito e buscava informação junto à polícia e, eventualmente, junto a familiares para saber o que aconteceu.”

Ele explicou que nos últimos anos entraram pessoas no ministério sem conhecimentos nesse quesito. “Sem um trabalho qualificado, sem fazer um trabalho de follow up de buscar informações, de pressionar os estados, de dar treinamento, muitas vezes resultam nesses dados sem qualidade”, apontou.

Outro fator para que esses dados sejam ruins pode ter relação com o sucateamento da estrutura em que o dado é gerado nos estados. “Pode estar ocorrendo falta de treinamento, os servidores não estão aparelhados, os locais podem estar sem equipamentos ou pode haver falta de pessoal. Isso pode gerar a produção primária ruim de informações nos estados.”

Ele avalia que se houver compartilhamento de informação entre agências do sistema de informação sobre mortalidade, ou seja, compartilhamento de informações entre polícia, IML (Instituto Médico-legal) e secretarias de saúde, a tendência é que haja uma melhora, porque entre eles, as coisas costumam funcionar.

“Só que, às vezes, mesmo dentro do próprio estado, dentro do executivo estadual, a informação não flui. Então essa é uma razão porque os estados muitas vezes apresentam dados ruins.” Ele espera que esse trabalho de informações qualificadas seja recuperado. “O Ministério da Saúde e o SUS são patrimônios nacionais.”

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O professor Cezar Bueno de Lima, da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e membro pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos da mesma instituição, em Curitiba, afirma que existem as instituições oficiais de estado e não instituições de governo e elas precisam funcionar de acordo com esse princípio da confiança da população nas instituições de pesquisa. “A partir de um momento em que você tem citações de morte, onde você não coloca a causa ou a causa é desconhecida, eu não teria como afirmar que houve redução de homicídios, a não ser sendo leviano na afirmação, absolutamente sem nenhuma conexão com a exigência da coleta de dados e da pesquisa”, apontou.

“As consequências disso é que a população fica refém de uma verdade produzida por instituições que precisam e devem funcionar a partir de parâmetros que proporcionem autonomia em relação à ingerência política, porque do ponto de vista político, um aumento da taxa de homicídios possa trazer prejuízos políticos eleitorais para determinados partidos com coligações governamentais. Mas o fato é que as instituições de estado não se confundem com a política”, argumentou Lima. “Nesse sentido a população fica refém de informações vitais, porque a partir do momento em que os dados não são confiáveis, eu não posso fazer pressuposições, com base em coisas que efetivamente podem estar equivocadas porque as bases que fornecem os dados estão com problema”, apontou o professor da PUC-PR.

Ele questiona se há interferência governamental na instituição, no sentido de evitar que causas de homicídio pudessem ser reveladas, como outras causas ou causas desconhecidas. “A partir deste momento que você pode ter uma interferência política na divulgação dos dados você compromete toda a veracidade dessa informação.”