Com a aceleração do uso da tecnologia nas salas de aula, principalmente por conta da pandemia, discutir cultura digital se tornou urgente para educadores e instituições de ensino. Já passamos da fase das aulas remotas, com os professores diante de câmeras e alunos do outro lado da tela, passivos e entediados com o conteúdo. Hoje, o ensino encara o desafio proposto pela modalidade híbrida e o que era quase que totalmente analógico há alguns anos, agora conversa com diversas modalidades digitais com um objetivo apenas: capturar a atenção dos jovens e fazer eles perceberem que as ferramentas que já dominam e usam para a diversão, podem fazer toda a diferença na hora de traçar o futuro. E a escola, tem todo o potencial de orientar o bom uso da tecnologia e de formar cidadãos digitalmente responsáveis.

Para Celso Hartmann, diretor executivo dos colégios do Grupo Positivo, a tecnologia precisa apoiar o estudo e o professor e não apenas em aulas remotas ou no ensino híbrido, mas sobretudo dentro do ensino presencial. “Os jovens estudantes têm a tecnologia como padrão em suas vidas atualmente. Para eles, redes sociais, gadgets, comunicação on-line e em tempo real são lugares comuns. A escola precisa agir como ente educador, direcionando o melhor uso das mesmas e, principalmente, mostrando que a tecnologia existe para uso acadêmico e de trabalho, não apenas para diversão”, diz.

Para Celso Hartmann, a tecnologia precisa ajudar os alunos também ao presencial
Para Celso Hartmann, a tecnologia precisa ajudar os alunos também ao presencial | Foto: Divulgação

É preciso que os estudantes entendam que a tecnologia tem um lado árido que vai marcar presença na futura vida de adulto, quando eles terão que fazer planilhas, uma apresentação profissional ou formatar um documento acadêmico. “As escolas precisam apoiar os alunos neste uso mais profissional da tecnologia, e isso pode ser feito no dia a dia, durante as aulas. A aula de matemática pode ser sobre planejamento financeiro e utilizar uma planilha para apoio. Na aula de língua portuguesa, a tecnologia pode ensinar a produção de um trabalho de pesquisa escolar dentro das normas da ABNT, usando um editor de texto”, explica.

Hartmann ainda defende uma nova forma de ensinar com o ensino híbrido, já uma realidade da vida escolar. “É preciso adotar conceitos como o de aula invertida, na qual o aluno precisa se esforçar, buscar informações e ir para a aula remota ou presencial onde ele será desafiado a falar sobre suas pesquisas, a realmente participar ativamente da aula. A tecnologia é o meio: o aluno pode usá-la para acessar repositórios de documentos, assistir vídeos ou aulas ao vivo, produzir vídeos e trabalhos em grupo, mas o que realmente o motivará é o conteúdo e o professor; o desafio de pesquisar um conteúdo novo, a tarefa de apresentar para os seus colegas seus trabalhos usando ferramentas variadas que estão no dia a dia destes adolescentes, como o TikTok”, afirma.

Os colégios do grupo Positivo já vêm tratando a cultura digital para algo bem além dos livros digitalizados ou sites com exercícios. “Cultura digital é utilizar diversas ferramentas aliadas a novas metodologias, como a aula invertida e a gamificação, tudo isso de forma absolutamente integrada ao projeto pedagógico”, diz o diretor. Isso também passa pela questão da segurança. “Dentro das nossas aulas de formação humana trabalhamos o uso responsável e seguro de tecnologia, desde como devemos nos portar em redes sociais de forma a preservar nossa imagem e segurança, até a como se proteger de ameaças como golpes usando ferramentas digitais, vírus e phishing”, comenta.

Na opinião de Hartmann, uma educação analógica em um mundo digital é contraproducente. “A escola é parte da sociedade, e precisa estar atenta para, efetivamente, se integrar a essa, formando cidadãos éticos, úteis e produtivos, que estejam atentos aos problemas cotidianos e que possam, com a força do conhecimento, apresentar soluções para os mesmos. Sabemos que grande parte do trabalho hoje é digital ou ocorre por meios digitais. A escola precisa preparar os alunos para o uso efetivo de ferramentas digitais no seus dia a dia, e uma das melhores formas de se fazer isso é inserindo o uso dessas ferramentas no seu projeto pedagógico, no cotidiano da sala de aula”, comenta.

Os docentes também passam por essa revolução e contam com o apoio das instituições de ensino para acompanharem o ritmo das mudanças e dos próprios alunos. “Possuímos um Centro Pedagógico que produz cursos que são disponibilizados para todos os nossos professores e ministrados via plataforma on-line, de forma assíncrona e síncrona. Esses cursos vão de conteúdos muito simples e técnicos do tipo ‘Como utilizar melhor a câmera fotográfica do seu celular’ até metodologias inovadoras de ensino de matemática para crianças. Uma escola precisa querer evoluir, querer aprender. Seus professores, da mesma forma, precisam entender que o mundo mudou e que faz parte do trabalho de um educador se manter atualizado”, completa Hartmann.

“A tecnologia digital já faz parte do nosso dia a dia e pode ser compreendida como uma nova linguagem a ser inserida no currículo escolar", declara Fenato
“A tecnologia digital já faz parte do nosso dia a dia e pode ser compreendida como uma nova linguagem a ser inserida no currículo escolar", declara Fenato | Foto: Divulgação

Para Taís Gardenal Fenato, coordenadora de tecnologia na educação do Colégio Maxi e digital learning advisor Cognita, a tecnologia quando empregada de maneira significativa estimula a reflexão e a análise nos estudantes além de contribuir nas atitudes críticas em relação ao conteúdo que estão consumindo. O resultado? Jovens mais ativos e também produtores de tecnologia digital. “A tecnologia digital já faz parte do nosso dia a dia e pode ser compreendida como uma nova linguagem a ser inserida no currículo escolar. É de extrema importância ensinar e orientar todos os envolvidos a se tornarem exploradores confiantes e seguros no mundo on-line”, afirma.

Para a coordenadora, os desafios do ensino híbrido ainda são muitos. “É importante, principalmente, investir na formação dos professores para que aproveitem ao máximo a tecnologia digital como um recurso que contempla a intencionalidade pedagógica para motivar nossos alunos na autonomia, saber trabalhar em equipe e colaborar em sala de aula e não apenas fazer o uso da ferramenta por si só. No Colégio Maxi, temos o aluno tutor, um programa que também auxilia o bom uso da tecnologia em sala de aula, onde os alunos dão suporte para o professor e também buscam novos recursos para apoiar a construção de projetos. A tecnologia digital implementada com significado, ajuda a promover novas formas de melhorar a maneira como os professores ensinam e os alunos aprendem”, diz.

Avanço tecnológico ganha mais destaque com homologação da Base Curricular

Situação, no entanto, escancara um grande problema no país: a falta de infraestrutura das escolas e a formação continuada dos professores

A cultura digital é ampla e contempla diversidade de multimeios, mescla diferentes mundos e culturas e pode ser definida como o conjunto de práticas, costumes e formas de interação social as quais são realizadas a partir dos recursos da tecnologia digital, afirma Taís Fenato, coordenadora de tecnologia na educação do Colégio Maxi e digital learning advisor Cognita. O tema ganhou ainda mais destaque com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por conta das mudanças provocadas pelo avanço tecnológico e do crescente acesso a essas mudanças e aos próprio dispositivos. “Em uma sociedade que permanece em constante crescimento e transformação, a cultura digital surge com práticas inovadoras ressignificando o ambiente escolar. Nesse contexto o Colégio Maxi inseriu no currículo escolar a Educação Digital para todos os segmentos divididos em três eixos: Cultura Digital e Cidadania Digital, Pensamento Computacional e ICT - Tecnologia, Informação e Comunicação entendendo a importância para o processo de ensino e aprendizagem no desenvolvimento de novas habilidades e competências dos alunos”, revela.

A segurança nos ambientes digitais também é importante para o Colégio Maxi que adotou a plataforma de gerenciamento de ensino Google Classroom que permite o compartilhamento de informações e conteúdo entre professor e aluno, tornando o ensino mais produtivo, colaborativo, relevante e seguro. Além disso, a instituição possui uma coordenação de tecnologia na educação responsável em promover formações pedagógicas essenciais para o bom uso dos recursos tecnológicos.

O Colégio também incluiu em seu cronograma de aulas a disciplina Digital Learning que trabalha vários temas sobre Cidadania e Segurança Digital. “O objetivo é orientar alunos, professores e pais a se tornarem exploradores confiantes e seguros do mundo on-line”, diz. “Encaramos este momento como uma oportunidade de descobrir como inovar nossas vivências e experiências pedagógicas. Os recursos estão aí e todos já se adaptaram e entenderam como usar. Só é preciso criar estratégias para incorporar a Cultura Digital de forma equilibrada e segura. Gradativamente esses recursos irão se revelar altamente eficazes na promoção de um ensino em constante atualização e de qualidade”, completa.

Em 2016, o Colégio Maxi implantou o serviço Google for Education e em 2019 recebeu o selo de Escola de Referência Google for Education, a primeira do Paraná e a terceira escola do sul do país a receber a certificação. “Construímos uma cultura de formação para os professores sobre os recursos e ferramentas tecnológicas que podem ser usadas a favor da educação. É muito importante destacar o selo de Escola Referência Google nesse momento tão impactante, com um Google Trainer se atualizando e sempre trazendo novos projetos, recursos e ferramentas para incluir nas formações da equipe pedagógica. Ele também atua no suporte e preparação dos professores para a Certificação Educador Google, uma prova de proficiência sobre o uso com significado da tecnologia digital em sala de aula e que reconhece o professor inovador de práticas pedagógicas e com habilidades essenciais para implementar a tecnologia digital em suas aulas”, revela.

DESAFIO

O avanço da tecnologia nas salas de aula também escancara um grande problema no País: a falta de infraestrutura das escolas e a formação continuada dos professores, uma situação ainda mais complicada na escola pública. Diene Eire de Mello é professora associada da Universidade Estadual de Londrina (UEL), docente do Programa de pós-graduação em Educação (PPEDU-UEL), com ênfase em formação de professores e com pós-doutorado em educação com foco no e-learning pela Universidade Aberta de Portugal (2015) e para a pesquisadora, as mudanças bruscas provocadas pelos avanços tecnológicos colocam em xeque a educação.

“É preciso saber para que servem as tecnologias no processo de ensino”, diz Diene Eire de Mello, da UEL
“É preciso saber para que servem as tecnologias no processo de ensino”, diz Diene Eire de Mello, da UEL | Foto: Gustavo Carneiro

Entre os desafios, recuperação das perdas na educação provocada pela pandemia e a melhoria do acesso à tecnologia. “É preciso saber para que servem as tecnologias no processo de ensino. Se esta não for utilizada para que os alunos se apropriem de maneira crítica, criativa e cidadã dos conceitos científicos eu diria que tal investimento não vale a pena”. Segundo a professora, pesquisas demonstram que os avanços tecnológicos nem sempre são acompanhados de pedagogias que podem dar respostas aos novos modos de ensinar e aprender. “Apesar de excelentes pesquisas neste campo no Brasil e no mundo, há uma dificuldade gigantesca para que tais experimentações cheguem de fato até o chão do escola”, diz.

Confira trechos da entrevista:

Como a pedagogia vem tratando essa nova fronteira do ensino, a tecnologia? Existem pesquisas na academia sobre o tema?

O desafio é enorme, pois o avanços tecnológicos se dão de maneira acelerada, com transformações rápidas nunca antes vivenciadas pela humanidade. Avanços que não são acompanhados por outros setores da sociedade, como no caso da educação. São mudanças bruscas em um curto período de tempo que estão a desafiar o modo de fazer educação. Di Felice, um autor italiano que gosto muito, aponta que o advento das redes sociais digitais e as suas implicações para as transformações das nossas sociedades nos desafiam a buscar novas teorias interpretativas capazes de narrar o dinamismo contemporâneo. Pesquisas ao redor do mundo tem demonstrado que os avanços nas tecnologias não têm sido acompanhados de pedagogias que possam dar respostas aos novos modos de ensinar e aprender. Apesar de excelentes pesquisas neste campo no Brasil e no mundo, há uma dificuldade gigantesca para que tais experimentações cheguem de fato até o chão do escola.

Quais os desafios para os professores com a tecnologia? Ficou mais complexo o ato de educar?

Os desafios são gigantescos, pois existe uma distância considerável entre os usos das tecnologias, seus artefatos e diferentes apps, de forma individual em diferentes tarefas e o uso pedagógico. É preciso investir maciçamente na formação de professores para que os usos pedagógicos se efetivem em melhorias na qualidade de ensino. Há ainda um certo fetiche em relação aos usos de tecnologias na educação, como se a simples inserção das mesmas reverberasse automaticamente em inovações pedagógicas. Pesquisas ao redor do mundo têm demonstrado que um amplo investimento em tecnologia altera pouco o desempenho dos estudantes. É preciso saber para que servem as tecnologias no processo de ensino. Se esta não for utilizada para que os alunos se apropriem de maneira crítica, criativa e cidadã dos conceitos científicos eu diria que tal investimento não vale a pena.

As tecnologias tem um potencial gigantesco, mas precisam ser utilizadas como ferramentas que ajudem os alunos a pensar, criar, analisar, partilhar e cocriar. A cidadania hoje depende em grande parte de educarmos crianças e jovens para estarem no mundo que se movimenta marcado pelo digital. Neste sentido, não podemos educar para o simples consumo de aparelhos e apps que vendem produtos e nos tornam consumidores e mercadoria na rede. Cabe à educação, à escola, uma ação emancipatória e humanizadora, principalmente quando os algoritmos estão a nos espionar, instigar e assim por diante. Ser professor na atualidade é muito mais complexo, pois há 30,40 anos as informações e conteúdos estavam em um único lugar, em um único suporte que eram os livros. Hoje a informação e os conteúdos científicos estão nas redes e são atualizados constantemente. Cabe ao professor, aos gestores um trabalho contínuo de formação para lidar com este ‘mar de informações fragmentadas’ que chega até o aluno. A pandemia mostrou um fato de extrema importância, que é o papel do professor no processo de mediação pois informação, não é conhecimento. O aluno, mais especificamente os menores, precisam da presença do professor.

Como a cultura digital vem sido inserida no ensino? Foi uma tendência acelerada pela pandemia?

Avançamos. Considero que apesar de todo sofrimento dos professores e estudantes, houve ganhos. É o que chamamos de reinvenções didáticas, pois foi necessário para que aquele professor, que não tinham domínio ou competência digital, se reinventasse mesmo que a duras penas. Eu insisto e quero acreditar que muitas aprendizagens serão incorporadas ao ensino presencial. Nos dados que temos levantado no Grupo de Pesquisa DidaTIC que coordeno, uma pesquisa com professores do ensino superior de várias universidades, revelou que mais de 70% dos professores irão incorporar as aprendizagens adquiridas no decorrer do Ensino Remoto. Logicamente que a pandemia acelerou tal processo. Penso que avançamos, em termos de uso, dez anos em dois. Alguns pesquisadores apontam que a pandemia foi um convite à ruptura. Não vejo como um convite, mas uma forma de sobrevivência, de manter o contato com os estudantes e darmos continuidade ao trabalho pedagógico. Entretanto, não estávamos prontos para uma mudança tão radical na forma de organizar o processo de ensino mediado pelas tecnologias. Desta forma, penso que os danos oriundos do ensino remoto, principalmente em relação às crianças, ainda não foram totalmente diagnosticados. Teremos que ’correr atrás’. As perdas serão inevitáveis. Por mais que alguns queiram agora pensar na educação híbrida como uma modalidade, esta não é adequada para crianças que precisam mais do que conteúdo, de contato, de convivência, de brincar com outros, dialogar, partilhar, matematizar, inventar como condição para o seu desenvolvimento. Um outro aprendizado da pandemia é de certa forma a consciência de que precisamos uns dos outros. Temos que aprender as sermos mais reesposáveis, mais solidários e mais humanos. Só foi possível o desenvolvimento de vacinas por meio de esforços múltiplos. Educar para a cultura digital também implica em levar tais aspectos em consideração. Cito o pesquisador André Lemos que nos lembra que há sempre dobras no tempo que podem nos levar à emancipação ou retrocessos. Precisamos olhar para este período caótico e sobre nosso papel como educadores neste mundo.

Como os professores e pedagogos estão atuando para que os alunos tenham uma cultura digital? Na sua opinião, a estrutura escolar está pronta para tantas mudanças?

Não estamos prontos, em diferentes aspectos: seja do ponto de vista da estrutura precária das instituições de ensino, da desigualdade e baixo nível de inclusão digital dos estudantes de escolas públicas aliada à baixa fluência digital dos professores. Eu estou na área desde 1999, quando atuei no PROINFO (Programa Nacional de Informática Educativa), que tinha o objetivo de informatizar as escolas do Brasil e formar professores. Depois atuei como membro da equipe de Avaliação do Programa UCA (Um Computador por Aluno) em 2007. Em 2010, iniciou-se a distribuição dos laptops nas escolas públicas escolhidas. Depois vieram os tablets de péssima qualidade e sem um amplo programa de formação de acompanhamento. Como pensar em tecnologias móveis com a baixa cobertura de internet nas escolas? O que tenho presenciado nestes últimos 20 anos é o resultado de programas desconexos e políticas publicas sem continuidade. As tecnologias ficam obsoletas rapidamente e não há uma preocupação governamental para equipar escolas e manter programas de formação. A pandemia escancarou uma triste realidade. Vivemos em um país desigual e a falta de acesso a esses bens cria um abismo entre aqueles que têm acesso e os que não tem. A escola deve ser um equipamento de inclusão das pessoas. Importante também não só reconhecer o papel das tecnologias digitais como potencializadoras das ações humanas, mas compreendê-las como um bem cultural, sendo seu acesso um bem inalienável a todo e qualquer cidadão. Cabe a nós tomar tal ideia como bandeira de luta em defesa de uma infraestrutura adequada nas escolas públicas, seguido de um amplo trabalho formativo junto aos professores, bem como acesso a todos.

Receba nossas notícias direto no seu celular! Envie também suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1.