'Crise' do Enem afeta mais concluintes do ensino médio
Para especialistas em educação, alunos da rede pública e com menor faixa de renda estão sendo "empurrados" cada vez mais para longe do ensino superior
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 24 de agosto de 2021
Para especialistas em educação, alunos da rede pública e com menor faixa de renda estão sendo "empurrados" cada vez mais para longe do ensino superior
Vitor Struck - Grupo Folha
Embora a pandemia da Covid-19 tenha colaborado para desestruturar a aprendizagem dos estudantes mais vulneráveis socialmente em todas as etapas de formação, alunos com idade para concluírem o ensino médio são os mais prejudicados, uma vez que estão mais longe de vagas nas universidades do país. Diante desta realidade, agravada por uma "crise" no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o Brasil poderá assistir ao surgimento de uma geração ainda mais fragilizada dentro da faixa populacional, que já tem menos oportunidades de ascensão social - majoritariamente pretos e pardos, que representam mais de 50% dos inscritos.

Paralelamente, o adiamento do ingresso no ensino superior é um fenômeno que também merecerá atenção no curto prazo. É o que avaliam especialistas em educação ouvidos pela reportagem no momento em que o país aguarda o julgamento de um pedido de liminar pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, que poderá garantir o retorno à "corrida" daqueles que deixaram de se inscrever no Enem após mudanças nas regras de isenção.
Apresentada na forma na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 874, o pedido protocolado por partidos de esquerda para que o prazo de aceitação da autodeclaração de ausência na última edição daqueles alunos que tiveram direito à gratuidade seja reaberto. A expectativa é que o pedido seja julgado nesta semana.
Por conta da pandemia, o Ministério da Educação estendeu a gratuidade a uma faixa ainda maior de estudantes em comparação com edições anteriores. Entretanto, decidiu extinguir o direito à isenção do pagamento da taxa de inscrição daqueles estudantes que decidiram não comparecer ao dia da prova por medo de contraírem a Covid-19. Só foram aceitas situações como o falecimento de familiares, acidentes de trânsito ou problemas de saúde como justificativas para a manutenção do direito na edição do Enem que será realizada nos dias 21 e 28 de novembro, a que registra o menor número de inscritos desde 2005.
Com a queda do direito à isenção, a mudança de perfil foi imediata, apontou pesquisa da Semesp (Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação), entidade que representa as mantenedoras do ensino superior no Brasil. Conforme a Semesp, houve queda de 77,4% no número de inscritos de famílias com renda inferior a três salários mínimos. Além de contar com 2,8 milhões de inscritos a menos ao todo, a próxima edição do Enem também registra número de pagantes 39,2% maior.
Coordenadora do Observatório do Ensino Médio da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e docente da instituição, Monica Ribeiro considera que a queda no número de inscritos no Enem possui forte relação com a mudança na política de isenção. Entretanto, também considera o "abatimento" de boa parte dos estudantes, que tiveram reduzidas suas perspectivas de conclusão do ensino médio como elemento que também colaborou para o resultado.
À FOLHA, Ribeiro apontou que é alto índice de alunos que não conseguiram acompanhar os estudos de casa em 2020 e tiveram sua perspectiva de conclusão da etapa em 2021 amplamente reduzida. "Tivemos muita desistência, um abandono maior. Isso variou de estado para estado, mas em média, no Brasil, no minimo 50% dos estudantes que deveriam concluir não concluíram. Isso somado a mais um ano de muitas incertezas, um total considerável de estudantes que não frequentaram as aulas e que também não tem previsão de concluir. Isso também impacta porque um número importante das inscrições no Enem são dos concluintes no ano", explica.
Só para se ter uma ideia, o número de alunos que realizaram a inscrição no Enem no ano em que concluiriam o ensino médio vem caindo drasticamente há pelo menos quatro edições. Em 2017, mais de 2 milhões de inscritos apontaram estar nesta situação. Já em 2019, este número caiu para 1,5 milhão, tendo caído para cerca de 1 milhão na edição deste ano.
"Nova" geração prejudicada
O especialista em Enem, Mateus Prado, citou uma previsão feita pelo ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), José Francisco Soares, do período anterior à chegada da Covid-19, porém posterior ao início da gestão Jair Bolsonaro. "Ele disse que vamos ter uma nova diferença entre diferentes", citou.
"Essa geração que se forma na pandemia, de escola pública, é a mais prejudicada. Esse aluno de 19 anos que, além de não ter a oportunidade (de fazer o Enem), vai estar em diferença em relação aos outros que se formaram anteriormente. Porque a pandemia desorganizou o que tínhamos de ruim. Vamos criar um novo grupo de diferentes", lamentou Prado.
Além disso, apontou que a queda no número de inscritos também poderá colaborar para que sobrem vagas em determinados cursos nas federais, abrindo uma brecha para que sejam fechadas permanentemente. "Vai sobrar, principalmente nas licenciaturas", lamentou.
PERSPECTIVA
Estudante de um cursinho pré-vestibular de Londrina, Lucas Moreira, 23, avaliou que o custo da inscrição do Enem, de R$ 85, não é "alto". Porém, "o problema é a quantidade de vestibulares que você tem que fazer. Muitos são próximos um do outro. O valor, pela proporção que o Enem tem, é um valor acessível, só que é um valor que poderia ‘virar’ uma carne, gasolina", exemplificou o estudante que vem buscando uma vaga no curso mais concorrido, Medicina.
"Tem o pessoal que não conseguiu pagar, mas tem o que não vê o Enem como perspectiva de vida. Ficou pensando se gastava o dinheiro ou não", completou o professor Mateus Prado.
ADIAMENTO
O adiamento do ingresso ao ensino superior em massa é um fenômeno destacado pelo consultor da Hoper Educação e doutor em Ciências Humanas pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), João Vianney. À FOLHA, Vianney apontou que este adiamento pode ser constatado, também, na queda do número de estudantes que buscaram vagas em universidades pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada), "de 40% entre 2019 e 2021", apontou. Vianney também mencionou um "tombo" na quantidade de alunos que buscaram concluir o ensino médio através do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos).
"O Enem voltou aos níveis de 15 anos atrás, para as inscrições equivalentes a 2005 e 2006. E, nas provas do Encceja, observando os números de 2019 para as inscrições do Encceja realizadas em janeiro de 2021, a queda de inscritos foi de 45%. Ou seja, não foi o Enem que perdeu inscritos. Foi a sociedade que se manifestou pelo adiamento da entrada no ensino superior e isto está evidente em todas as demais estatísticas", lamentou.
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