Aquela era para ser apenas mais uma viagem de van a Londrina. O então estudante de direito e morador de Faxinal (Centro-norte) Eduardo Augusto Mansano Manso, hoje com 26 anos, realizava um objetivo de vida traçado ainda no ensino médio, quando começou um estágio voluntário no Ministério Público da vizinha Grandes Rios. Naquele dia, em 2014, o assento ao lado havia ficado vago até Tamarana (Região Metropolitana de Londrina), onde João Kupe, caigangue da Terra Indígena Apucaraninha, embarcou.

O advogado Eduardo Augusto Mansano Manso abordou exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes em palestra na Reserva Apucaraninha
O advogado Eduardo Augusto Mansano Manso abordou exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes em palestra na Reserva Apucaraninha | Foto: Acervo Pessoal

Ele acabou me contando que estava fazendo Letras na UEL (Universidade Estadual de Londrina). Aquilo para mim foi demais, sabe? Nós acabamos reclamando de sair de Faxinal, mas o pessoal sai lá da aldeia para enfrentar uma universidade. Ele acabou falando do preconceito que sofriam, da discriminação, que a comunidade 'branca' acaba não valorizando isso”, lamentou.

A conversa com Kupe, que evoluiu para diversos temas relacionados aos aspectos que regem a vida na aldeia, foi responsável por abrir uma “cortina” na mente do jovem advogado, até então desconhecedor do “ordenamento jurídico indígena”, brinca, e até mesmo dos abusos que ainda são cometidos contra essa população. Além de ter sido um estopim para a escolha do tema do trabalho de conclusão de curso da graduação.

No entanto, a produção acadêmica intitulada “Tutela Jurídica Indígena: Capacidade e Direitos Civis”, ainda não havia sido o bastante para satisfazer a vontade de ajudar aquela população, algo que adquiriu em casa. Filho de voluntários na igreja em Faxinal, Manso recorre diversas vezes à fé em Deus para explicar o que o moveu mais tarde a desenvolver e apresentar o projeto “Direito nas Comunidades Indígenas” a técnicos da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Londrina, “para que tudo aquilo que havia estudado não ficasse só no papel”.

O que era somente uma ideia, que consiste em identificar problemas recorrentes e situações em que os direitos dos cidadãos são violados para focar nesses temas em palestras, pôde ser concretizada em maio deste ano na Reserva Apucaraninha. Mobilizados pelos professores e auxiliares da escola, quase 200 indígenas compareceram para a primeira palestra cujo tema não poderia ter sido mais oportuno: exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes.

Hoje o nível de exploração e abuso sexual de índias dentro da aldeia, de meninas 10, 12 anos, é altíssimo. E o pessoal fala 'ah, mas é cultura deles'. Não, não é cultura deles, é o homem branco que vai lá dentro explorar. O cara sai do bar em Tamarana, chega lá e já abusa. É muito grave o que está acontecendo e ninguém sabe”, apontou.

Manso aproveitou para denunciar outra mazela, a escravidão indígena. “Vem um fazendeiro, leva o índio para trabalhar e dá R$ 10 por dia para ele fazer cerca e ninguém está olhando isso”, lamentou.

O objetivo, no entanto, é não parar por aí e tratar de temas como evasão escolar, uma vez que muitos jovens indígenas pretendem prestar vestibular. Outro assunto é o consumo de álcool e drogas. “O índio não tem uma enzima que faz a absorção do álcool no organismo. Então ele ingere a bebida alcoólica e já vai direto para o cérebro e acaba ficando alterado, batendo na mulher. Por causa da bebida, ele fica muito vulnerável a outros problemas”, explicou.

Questionado se o projeto se torna ainda mais importante em tempos em que os interesses da população indígena vêm sendo colocados em risco, a exemplo da medida provisória que chegou a determinar que a demarcação de terras indígenas fosse responsabilidade do Ministério da Agricultura, por exemplo, mas que não se concretizou, o jovem concordou. “Acabou que os índios foram deixados de lado ainda mais. É o que me dá mais força”, destacou.

Para o advogado, o fortalecimento dessa população, que no Paraná chega a 13,3 mil pessoas, só ocorrerá com o acesso à informação, “à letra da lei, a principiologia básica do que é o direito e o dever para que essa comunidade não seja explorada. O projeto é justamente por isso”, afirmou.

RECONHECIMENTO

Meses mais tarde, o advogado Eduardo Augusto Mansano Manso sistematizou a ideia de levar noções básicas de direito e traduzir para os índios o que é ser cidadão com base na Constituição de 1988. Tudo foi registrado na plataforma da Friendship Ambassador Foundation, organização sem fins lucrativos ligada à Unesco, entidade da ONU (Organização das Nações Unidas) para a educação, ciência e cultura.

Há pouco mais de duas semanas veio a boa notícia. O projeto foi selecionado por atender a duas diretrizes estipuladas para a Youth Assembly (Assembleia da Juventude), evento que reúne jovens e líderes do mundo todo para discutir iniciativas voltadas ao desenvolvimento humano para próxima década.

Foram elas: reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles; e proporcionar o acesso à Justiça para todos, construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. “Em 2015, 193 países aderiram a esta agenda 2020/2030 que têm 17 objetivos de desenvolvimento sustentável que os países precisam cumprir até 2030”, lembrou Manso.

Agendado para a segunda semana de agosto na The George Washington University, agora o desafio é ir a Washington para o evento, uma vez que todos os custos são por conta dos participantes. Manso estima que levar a experiência do Apucaraninha aos Estados Unidos não sairá por menos de R$ 15 mil. Por conta disso, o jovem está articulando para conseguir uma hospedagem nos Estados Unidos e até uma “vaquinha”virtual já está sendo realizada.

Lembro que perguntei a um índio 'você sabe o que é pedofilia' e ele acabou acertando com as palavras dele. É muito gratificante. Acho que é um trabalho que vale muito a pena e a felicidade é muito grande de poder dar voz aos índios”, comemorou.

De acordo com a obra “Índios no Brasil – Vida, Cultura e Morte (Editora Intermeios)”, estima-se que restaram apenas 900 mil dos mais 5 milhões de indígenas que habitavam o Brasil no período pré-colonial. Especial Transmídia de maio mostrou os modos de vidados moradores Reserva Indígena Apucaraninha e as demandas dos indígenas que restaram e mantêm viva parte fundamental da história do Brasil.